Não há como negar que o modelo paradigmático do liberalismo de liberdade de
escolhas para autocomposição de interesses, em igualdade de condições, teve seu
espaço reduzido substancialmente, a partir das primeiras décadas do século XX,
em razão da massificação contratual e da crescente concentração de capital.
Esse fenômeno real, mais que a intervenção legislativa, foi a causa efetiva da
crise da autonomia privada contratual. As massas são os “conjuntos humanos nos
quais o homem se revela como um ser anônimo e despersonalizado” [7].
Contemporaneamente, os contratos aos quais as pessoas mais se vinculam estão
submetidos a condições gerais predispostas por uma das partes, inalteráveis
pelos destinatários, submetendo milhares ou até mesmo milhões de pessoas.
Cite-se o exemplo dos contratos de planos de saúde no Brasil, os quais, na
entrada do século XXI, já alcançavam aproximadamente cinqüenta milhões de
usuários (contratantes e beneficiários). Os ordenamentos jurídicos tiveram de
se deparar com essas realidades do mundo da vida, para as quais o modelo
liberal clássico do contrato é totalmente inadequado.
Nos contratos de adesão, a conduta do contratante aderente não configura
exteriorização consciente de vontade, mas submissão às condições
preestabelecidas. Por esta razão, o Código Civil de 2002 protege o aderente,
qualificado como juridicamente vulnerável, com a interpretação que lhe seja
favorável, quando em conflito com o predisponente. Portanto, mais que a vontade
consciente exteriorizada, em casos que tais, o negócio jurídico emerge da
conduta ou comportamento geradores de efeitos equivalentes ao do negócio
jurídico volitivo, mas distintos. Hoje, os contratos de adesão atravessam toda
a vasta área contratual da circulação de bens e da prestação de serviços,
constituindo, em setores relevantes (bancário, de seguros, de fornecimento de
bens duradouros etc.) a forma largamente dominante, quase exclusiva, de
contratação. “Neles se jogam interesses econômicos nucleares da vida relacional
do homem comum” [8].
Conseqüência assemelhada se dá com os chamados
contratos necessários ou obrigatórios, a exemplo do seguro obrigatório para
licenciamento de veículos, nos quais a vontade é totalmente desconsiderada. Nos
contratos massificados de transporte coletivo pouco importa que a vontade do
passageiro seja contrária ao preço da tarifa ou até mesmo do objeto contratual,
quando se engana do destino. Para essas situações, alguns propõem que melhor se
enquadrariam como ato-fato jurídico ou até mesmo como fato jurídico em sentido
estrito, pois as normas do Código Civil relativas ao negócio jurídico e ao ato
jurídico lícito, segundo Moreira Alves, “esgotam a disciplina das ações humanas
que, por força do direito objetivo, produzem efeitos jurídicos em consideração
à vontade do agente, e não simplesmente pelo fato objetivo desta atuação” [9].
Os contratos de execução duradoura ou indeterminada, também denominados
relacionais, não podem ser submetidos aos mesmos requisitos dos contratos de
execução instantânea. São suscetíveis de modificação pelas circunstâncias
futuras, previsíveis ou não, até porque ninguém pode antecipar a regularidade
do mesmo estado de coisas com o passar do tempo. Esses contratos exigem
adaptação constante, com o reajuste e o re-equilíbrio de suas condições, o que
provoca a implosão do princípio clássico de sua vinculabilidade obrigacional (pacta
sunt servanda). Para esses contratos, são impróprias as soluções da teoria
geral do adimplemento e das consequências do inadimplemento, porque não
satisfazem os interesses das partes. Não se pode esperar que a onerosidade
insuportável para a parte vulnerável, em virtude das circunstâncias advindas da
execução negocial, tenha como solução a extinção do contrato. Nesses casos,
como no exemplo dos planos de saúde, há a razoável expectativa de que o
contrato perdure por anos ou até mesmo até o fim da vida da pessoa, impondo-se
a consideração da vulnerabilidade de quem dele se utiliza e o permanente
ajustamento da equivalência material.
A supremacia da vontade individual cedeu o lugar para os efeitos
contratualiformes do tráfico jurídico. Assim, não mais se estranha que haja
contratos obrigatórios, que certas condutas típicas sejam equiparadas a
aceitação, que a vontade negocial seja desconsiderada nos contratos massificados,
que o equilíbrio formal do contrato seja superado pela equivalência material. A
“morte do contrato” profetizada por Grant Gilmore não se consumou, salvo se for
referida ao modelo clássico, matrizado na soberania da vontade do livre
mercado, cujas teorias chocavam pela ausência de qualquer consideração social,
como ele próprio admite[10]. Houve, ao contrário, sua metamorfose, para
se adaptar à realidade de tão intensas mudanças da sociedade pós-industrial,
com a inevitável consideração dos sujeitos vulneráveis.
LÔBO, Paulo. Contratante vulnerável e autonomia privada. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3749, 6 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25358>. Acesso em: 15 out. 2013
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