terça-feira, 15 de outubro de 2013

Massificação contratual (Paulo Lôbo)



   
                A sociedade de massas multiplicou a imputação de efeitos negociais a um sem número de condutas, independentemente da manifestação de vontade dos obrigados. A globalização econômica  utiliza o contrato como instrumento de  exercício de dominação dos mercados e de desafio aos direitos nacionais, especialmente mediante condições gerais predispostas, que apenas são vertidas (quando o são) aos idiomas locais. A Administração pública tem abdicado dos clássicos instrumentos de soberania e imperium para desenvolver políticas públicas contratualizadas, como os contratos de gestão, em fenômeno que foi tido como “a fuga para o direito privado” [6]. A relação contratual de consumo, na dimensão que transcende os interesses dos figurantes e alcança a cidadania, está provocando uma das mais profundas transformações do direito, principalmente a partir da última década do século XX, no estalão da interdisciplinaridade.
                   Não há como negar que o modelo paradigmático do liberalismo de liberdade de escolhas para autocomposição de interesses, em igualdade de condições, teve seu espaço reduzido substancialmente, a partir das primeiras décadas do século XX, em razão da massificação contratual e da crescente concentração de capital. Esse fenômeno real, mais que a intervenção legislativa, foi a causa efetiva da crise da autonomia privada contratual. As massas são os “conjuntos humanos nos quais o homem se revela como um ser anônimo e despersonalizado” [7].
                   Contemporaneamente, os contratos aos quais as pessoas mais se vinculam estão submetidos a condições gerais predispostas por uma das partes, inalteráveis pelos destinatários, submetendo milhares ou até mesmo milhões de pessoas. Cite-se o exemplo dos contratos de planos de saúde no Brasil, os quais, na entrada do século XXI, já alcançavam aproximadamente cinqüenta milhões de usuários (contratantes e beneficiários). Os ordenamentos jurídicos tiveram de se deparar com essas realidades do mundo da vida, para as quais o modelo liberal clássico do contrato é totalmente inadequado.
                   Nos contratos de adesão, a conduta do contratante aderente não configura exteriorização consciente de vontade, mas submissão às condições preestabelecidas. Por esta razão, o Código Civil de 2002 protege o aderente, qualificado como juridicamente vulnerável, com a interpretação que lhe seja favorável, quando em conflito com o predisponente. Portanto, mais que a vontade consciente exteriorizada, em casos que tais, o negócio jurídico emerge da conduta ou comportamento geradores de efeitos equivalentes ao do negócio jurídico volitivo, mas distintos. Hoje, os contratos de adesão atravessam toda a vasta área contratual da circulação de bens e da prestação de serviços, constituindo, em setores relevantes (bancário, de seguros, de fornecimento de bens duradouros etc.) a forma largamente dominante, quase exclusiva, de contratação. “Neles se jogam interesses econômicos nucleares da vida relacional do homem comum” [8].
Conseqüência assemelhada se dá com os chamados contratos necessários ou obrigatórios, a exemplo do seguro obrigatório para licenciamento de veículos, nos quais a vontade é totalmente desconsiderada. Nos contratos massificados de transporte coletivo pouco importa que a vontade do passageiro seja contrária ao preço da tarifa ou até mesmo do objeto contratual, quando se engana do destino. Para essas situações, alguns propõem que melhor se enquadrariam como ato-fato jurídico ou até mesmo como fato jurídico em sentido estrito, pois as normas do Código Civil relativas ao negócio jurídico e ao ato jurídico lícito, segundo Moreira Alves, “esgotam a disciplina das ações humanas que, por força do direito objetivo, produzem efeitos jurídicos em consideração à vontade do agente, e não simplesmente pelo fato objetivo desta atuação” [9].    
                   Os contratos de execução duradoura ou indeterminada, também denominados relacionais, não podem ser submetidos aos mesmos requisitos dos contratos de execução instantânea. São suscetíveis de modificação pelas circunstâncias futuras, previsíveis ou não, até porque ninguém pode antecipar a regularidade do mesmo estado de coisas com o passar do tempo. Esses contratos exigem adaptação constante, com o reajuste e o re-equilíbrio de suas condições, o que provoca a implosão do princípio clássico de sua vinculabilidade obrigacional (pacta sunt servanda). Para esses contratos, são impróprias as soluções da teoria geral do adimplemento e das consequências do inadimplemento, porque não satisfazem os interesses das partes. Não se pode esperar que a onerosidade insuportável para a parte vulnerável, em virtude das circunstâncias advindas da execução negocial, tenha como solução a extinção do contrato. Nesses casos, como no exemplo dos planos de saúde, há a razoável expectativa de que o contrato perdure por anos ou até mesmo até o fim da vida da pessoa, impondo-se a consideração da vulnerabilidade de quem dele se utiliza e o permanente ajustamento da equivalência material.
                   A supremacia da vontade individual cedeu o lugar para os efeitos contratualiformes do tráfico jurídico. Assim, não mais se estranha que haja contratos obrigatórios, que certas condutas típicas sejam equiparadas a aceitação, que a vontade negocial seja desconsiderada nos contratos massificados, que o equilíbrio formal do contrato seja superado pela equivalência material. A “morte do contrato” profetizada por Grant Gilmore não se consumou, salvo se for referida ao modelo clássico, matrizado na soberania da vontade do livre mercado, cujas teorias chocavam pela ausência de qualquer consideração social, como ele próprio admite[10]. Houve, ao contrário, sua metamorfose, para se adaptar à realidade de tão intensas mudanças da sociedade pós-industrial, com a inevitável consideração dos sujeitos vulneráveis.



LÔBO, Paulo. Contratante vulnerável e autonomia privada. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3749, 6 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25358>. Acesso em: 15 out. 2013

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