terça-feira, 15 de outubro de 2013

Poder negocial, vulnerabilidade e hipossuficiência (Paulo Lôbo)



      
             Montesquieu disse, com razão, que o poder exercido sem qualquer controle degenera em abuso: “todo homem que tem em mãos o poder é sempre levado a abusar do mesmo; e assim irá seguindo, até que encontre algum limite” [5]. Sua reflexão, dirigida ao poder político, vale igualmente para o exercício de qualquer tipo de poder. A história ensina que a liberdade contratual transformou-se nas mãos dos poderosos em instrumento iníquo de exploração do que se presume vulnerável. Quem utiliza instrumentos contratuais para o exercício, ainda que legítimo, do poder negocial deve se submeter a controle social ou estatal. O exercício de poder implica submissão do outro. Seu controle tem como ponto de partida a identificação de quem a ele se submete, para que seja protegido dos abusos e excessos. Portanto, em relação ao poder negocial dominante, o controle preventivo ou repressivo se dá pela intervenção legislativa, de modo a proteger o juridicamente vulnerável.
                   Dispensa-se o controle quando, no contrato, os figurantes são presumivelmente iguais, seja porque os riscos econômicos são equivalentes, seja porque ambos detêm o domínio das informações, seja porque os poderes de barganha se encontram equilibrados. São iguais por presunção, pois não se pode exigir igualdade absoluta entre eles, dado a que sempre haverá entre os contratantes desigualdades pessoais, sociais e econômicas, que não são utilizadas para exercício de poder ou de exploração de um contra o outro. Nesses casos não faz sentido cogitar-se de presunção de vulnerabilidade jurídica. É o que se dá, na maioria dos casos, com os contratos interempresariais ou com os contratos entre pessoas que não exercem atividade econômica. Ainda assim há limitação da autonomia privada, no plano geral, em razão dos bons costumes e das normas legais que estabelecem critérios objetivos, fora da lógica de mercado, como a boa-fé e a função social.
                   A vulnerabilidade, sob o ponto de vista jurídico, é o reconhecimento pelo direito de que determinadas posições contratuais, nas quais se inserem as pessoas, são merecedoras de proteção. Não se confunde com a hipossuficiência, que é conceito eminentemente econômico ou conceito jurídico fundado na insuficiência das condições econômicas pessoais. De maneira geral, os juridicamente vulneráveis são hipossuficientes, mas nem sempre essa relação existe. A vulnerabilidade jurídica pode radicar na desigualdade do domínio das informações, para que o interessado em algum bem ou serviço possa exercer sua escolha, como ocorre com o consumidor; pode estar fundada na impossibilidade de exercer escolhas negociais, como ocorre com o aderente em contrato de adesão a condições gerais.
                   A vulnerabilidade contratual independe de aferição real ou de prova. A presunção legal absoluta não admite prova em contrário ou considerações valorativas, até porque a presunção é conseqüência que a lei deduz de certos fatos, às vezes prevalecendo sobre as provas em contrário. A presunção é o meio de prova pressuposta que dispensa a comprovação real. Qualifica-se como prova indireta. Tem natureza de ficção jurídica, pois é juízo fundado em aparências, como instrumento operacional para resolução de conflitos, substituindo os demais meios de prova. A presunção simplifica a prova, pois a dispensa.O legislador define a priori qual a posição contratual que deve ser merecedora de proteção ou do grau desta proteção, o que afasta a verificação judicial caso a caso. Não pode o juiz decidir se o trabalhador, o consumidor, o aderente, por exemplo, são mais ou menos vulneráveis, em razão de maior ou menor condição econômica, para modular a proteção legal, ou mesmo excluí-la. A lei leva em conta o tipo médio de vulnerabilidade, com abstração da situação real em cada caso. E assim é para se evitar que as flutuações dos julgamentos, ante as variações individuais, ponham em risco o princípio da proteção.
                   Até mesmo entre empresas, pode ocorrer vulnerabilidade jurídica, quando uma delas esteja submetida a condições gerais dos contratos predispostas pela outra. São situações comuns de vínculos contratuais permanentes para fornecimento de produtos ou serviços como as das concessionárias, das fornecedoras de mercadorias para redes de supermercados, ou das franqueadas. Ou então para obtenção de serviços que assegurem o funcionamento da empresa: fornecimento de água, luz, telefonia; seguros; acesso à rede computadores; manutenção de programas, etc.

LÔBO, Paulo. Contratante vulnerável e autonomia privada. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3749, 6 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25358>. Acesso em: 15 out. 2013.

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