Atualmente, assiste-se a um retorno preocupante a certos traços da cultura
pré-moderna, o que pode prenunciar um neofeudalismo[16] das relações jurídicas, ao lado da
revalorização do homo aeconomicus. Substituem-se os vínculos diretos
entre cidadão e Estado pela superposição de corpos intermediários. Passam a ser
mais importantes os vínculos obrigacionais contraídos pelas pessoas com grandes
empresas, pelo temor do desemprego e de insuficiência da previdência social, ou
com fornecedores de serviços e produtos, que produzem suas próprias ordens
normativas.
Alguns fatores têm contribuído para essa situação de perplexidade, de quase
dispensa do direito estatal, podendo ser assinalados:
a) superposição de vínculos jurídicos, especialmente com macroempresas
transnacionais, com organizações não governamentais de caráter nacional ou
transnacional, com instituições políticas, culturais, filantrópicas,
esportivas, com credos e instituições religiosas;
b) dispersão da consciência de res publica, de obrigação cívica com o
bem público, no Brasil agravada com uma tradição privatista do público, quase
sempre entendido como extensão do espaço doméstico e familiar;
c) contratualização do direito, o que leva a que os poderes normativos das
empresas tenham a aparência contratual, principalmente mediante condições
gerais dos contratos, fundando-se na legitimidade aparente da autonomia dos
sujeitos, os quais são a elas, de fato, submetidos;
d) redução substancial dos direitos garantidos em lei (garantismo legal), de
modo a que os mais fracos dependam de garantias convencionais, obtidas em
negociação com os mais fortes, inclusive mediante organizações profissionais;
e) contratualização das políticas públicas, abdicando o Estado do seu poder de
império, para assumir posição de contratante paritário, como se dá com os
contratos de gestão;
f) cerco à ordem econômica fundada na justiça social;
g) redirecionamento do papel do juiz, suprimindo-lhe o poder de intervenção na
atividade econômica, como o da revisão dos contratos iníquos, para garantia da
lógica dura do mercado;
h) predomínio de uma lex mercatoria ditada pelos poderes hegemônicos
globais, que se distancia dos tradicionais costumes mercantis consolidados.
Talvez o fator mais decisivo para o desenvolvimento de relações jurídicas que
tangenciam os direitos nacionais seja a rede de informação mundial, a internet,
que propicia a realização de inúmeros atos jurídicos, sem contato pessoal, à
distância, para os quais os Estados e suas ordens jurídicas diferenciadas
constituem estorvo. As pessoas adquirem ou utilizam produtos e serviços
oriundos de outros países, com legislações civil, contratual, tributária
e de direito internacional privado divergentes, que são desconsiderados pelos
que participam dessas transações.
LÔBO, Paulo. Contratante vulnerável e autonomia privada. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3749, 6 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25358>. Acesso em: 15 out. 2013.
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