terça-feira, 15 de outubro de 2013

Excurso (Paulo Lôbo)



           
        Estudiosos da filosofia, da sociologia e da ciência política têm vislumbrado sinais de pós-modernidade, a qual não significa juízo de valor positivo[15]. A modernidade trouxe injustiças, por seu impiedoso individualismo e exasperação dos valores patrimoniais, que reduzem o número dos titulares reais dos direitos subjetivos, mas trouxe avanços que marcaram indelevelmente a emancipação humana. Na perspectiva do direito, sua mais importante realização diz com a igualdade de todos perante a lei, libertando os homens dos vínculos a corpos intermediários, ordens, corporações e estamentos. Os direitos subjetivos, a todos formalmente conferidos, vieram substituir os direitos privilegiados, que decorriam de concessões em razão do lugar ou da posição ocupada na rígida hierarquia da ordem social. Configurando o último estágio conhecido do Estado moderno, o Estado social procurou oferecer oportunidade de realização da igualdade de todos na lei, mediante a concretização da justiça social. Um de seus mais importantes avanços, no direito privado, foi precisamente a  proteção do contratante que a lei considera vulnerável.
                   Atualmente, assiste-se a um retorno preocupante a certos traços da cultura pré-moderna, o que pode prenunciar um neofeudalismo[16] das relações jurídicas, ao lado da revalorização do homo aeconomicus. Substituem-se os vínculos diretos entre cidadão e Estado pela superposição de corpos intermediários. Passam a ser mais importantes os vínculos obrigacionais contraídos pelas pessoas com grandes empresas, pelo temor do desemprego e de insuficiência da previdência social, ou com fornecedores de serviços e produtos, que produzem suas próprias ordens normativas.
                   Alguns fatores têm contribuído para essa situação de perplexidade, de quase dispensa do direito estatal, podendo ser assinalados:
                   a) superposição de vínculos jurídicos, especialmente com macroempresas transnacionais, com organizações não governamentais de caráter nacional ou transnacional, com instituições políticas, culturais, filantrópicas, esportivas, com credos e instituições religiosas;
                   b) dispersão da consciência de res publica, de obrigação cívica com o bem público, no Brasil agravada com uma tradição privatista do público, quase sempre entendido como extensão do espaço doméstico e familiar;
                   c) contratualização do direito, o que leva a que os poderes normativos das empresas tenham a aparência contratual, principalmente mediante condições gerais dos contratos, fundando-se na legitimidade aparente da autonomia dos sujeitos, os quais são a elas, de fato, submetidos;
                   d) redução substancial dos direitos garantidos em lei (garantismo legal), de modo a que os mais fracos dependam de garantias convencionais, obtidas em negociação com os mais fortes, inclusive mediante organizações profissionais;
                   e) contratualização das políticas públicas, abdicando o Estado do seu poder de império, para assumir posição de contratante paritário, como se dá com os contratos de gestão;
                   f) cerco à ordem econômica fundada na justiça social;
                   g) redirecionamento do papel do juiz, suprimindo-lhe o poder de intervenção na atividade econômica, como o da revisão dos contratos iníquos, para garantia da lógica dura do mercado;
                   h) predomínio de uma lex mercatoria ditada pelos poderes hegemônicos globais, que se distancia dos tradicionais costumes mercantis consolidados.
                   Talvez o fator mais decisivo para o desenvolvimento de relações jurídicas que tangenciam os direitos nacionais seja a rede de informação mundial, a internet, que propicia a realização de inúmeros atos jurídicos, sem contato pessoal, à distância, para os quais os Estados e suas ordens jurídicas diferenciadas constituem estorvo. As pessoas adquirem ou utilizam produtos e serviços oriundos de outros países,  com legislações civil, contratual, tributária e de direito internacional privado divergentes, que são desconsiderados pelos que participam dessas transações.

LÔBO, Paulo. Contratante vulnerável e autonomia privada. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3749, 6 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25358>. Acesso em: 15 out. 2013.

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