terça-feira, 15 de outubro de 2013

A indispensável consideração da equivalência material (Paulo Lôbo)



    
               A vulnerabilidade é subprincípio derivado do grande princípio social da equivalência material, no plano da teoria geral dos contratos. É, todavia, princípio autônomo nas relações contratuais nas quais a vulnerabilidade de um dos figurantes é presumida por lei. Exemplo frisante é o do contrato de consumo, em que recebe expressa e destacada referência no CDC.
                   A equivalência material é objetivamente aferida quando o contrato, seja na sua constituição seja na sua execução, realiza a equivalência das prestações, sem vantagens ou onerosidades excessivas originárias ou supervenientes para uma das partes. No direito brasileiro, a norma que melhor a expressa, na ordem objetiva, é o inciso V do art. 6º do CDC, que prevê “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”. Na ordem subjetiva, leva em o que o direito presume como juridicamente vulneráveis, como o consumidor, o aderente, o inquilino, o trabalhador.
                   Como disse Franz Wieacker, “o positivismo, desprezando a antiga tradição – que vinha da ética social de Aristóteles, passando pela escolástica, até o jusnaturalismo – tinha deixado de atribuir qualquer influência à equivalência material das prestações nos contratos bilaterais” [12]. Por esta razão, todos os institutos jurídicos que levavam à justiça contratual e, consequentemente, à limitação da liberdade dos poderes negociais, foram afastados pela legislação liberal, a exemplo do Código Civil de 1916. Retoma-se o curso da história, recuperando e dando novas feições a esses institutos generosos, como a equivalência material, contribuindo para a humanização ou repersonalização das relações civis e a pacificação social.
                   A equivalência material enraíza-se nas normas fundamentais da Constituição brasileira de 1988, que veiculam os princípios da solidariedade (art. 3º, I) e da justiça social (art. 170). Este último artigo estabelece que toda a atividade econômica - exercida juridicamente mediante contratos – deve observar os “ditames da justiça social”, que , como vimos, voltam-se à promoção da mudança social e à redução das desigualdades reais dos figurantes.
                   No Código Civil de 2002 teve introdução explícita nos contratos de adesão. O Código o incluiu, de modo indireto, em preceitos dispersos, inclusive nos dois importantes artigos que disciplinam o contrato de adesão (arts. 423 e 424), ao estabelecer a interpretação mais favorável ao aderente (interpretatio contra stipulatorem) e ao declarar nula a cláusula que implique renúncia antecipada do contratante aderente a direito resultante da natureza do negócio (cláusula geral aberta, a ser preenchida pela mediação concretizadora do aplicador ou intérprete, caso a caso). O contrato de adesão disciplinado pelo Código Civil tutela qualquer aderente, seja consumidor ou não, pois não se limita a determinada relação jurídica, como a de consumo.
                   Em situações específicas, a equivalência material é revelada implicitamente. No Código Civil de 2002 ampliou-se, consideravelmente, o poder do juiz para revisar o contrato e para assumir o juízo de equidade, levando-o às fronteiras do legislador, ao menos no que concerne ao caso concreto. Ao juiz é dada a moldura, mas o conteúdo deve ser preenchido na decisão de cada caso concreto, valendo-se de princípios, conceitos indeterminados ou cláusulas gerais. Destaquem-se, nessa dimensão, os artigos 157 (lesão), 317 (correção do valor de prestação desproporcional), parágrafo único do art. 404 (concessão de indenização complementar, na ausência de cláusula penal), 413 (redução equitativa da cláusula penal), 421 (função social do contrato), 422(boa-fé objetiva), 423 (interpretação favorável ao aderente), 478 (resolução por onerosidade excessiva), 480 (redução da prestação em contrato individual), 620 (redução proporcional do contrato de empreitada).
                   O art. 4º do Código de Defesa do Consumidor estabelece que, para a proteção do consumidor, deve ser atendido, dentre outros, os seguintes princípios: “reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo”, ao lado do princípio da “harmonização dos interesses” e “equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedor”, sendo estes enunciados expressões da equivalência material.
                   A equivalência material, recepcionada como princípio normativo pelo direito brasileiro, rompe a barreira de contenção da igualdade jurídica e formal, que caracterizou a concepção liberal do contrato. Ao juiz estava vedada a consideração da desigualdade real dos poderes contratuais ou o desequilíbrio de direitos e deveres, pois o contrato fazia lei entre as partes, formalmente iguais, pouco importando o abuso ou exploração da parte vulnerável.

LÔBO, Paulo. Contratante vulnerável e autonomia privada. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3749, 6 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25358>. Acesso em: 15 out. 2013.

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