A família é base da sociedade e também matriz de todas as outras instituições. E em tempos em que a corrupção ocupa a cena, cabe pensar o caminho inverso: se na família estaria, em germe, o que se manifesta no meio social, político e econômico.
Corrupção: mau uso do poder, por autoridade, friso, para obter vantagens por interesses próprios, egoístas. Alguns meios de corrupção: autoritarismo, paternalismo, submissão, sedução, engano, chantagem, distorção e mentira. Perversão: mudança da finalidade original de uma função; um fenômeno não exclusivamente sexual, privado, mas público, social e político — um fenômeno estrutural.
De forma geral, o uso do poder e da autoridade podem reforçar, impedir, perverter o exercício das funções, seja na família, seja em outras instituições.
E é justamente na família que aprendemos que cada um tem um lugar, e exerce uma função a partir de seu estado (de filho, de pai, de mãe, e outros). É ela o berço das formas de exercício do poder, cabendo aos pais a autoridade.
É ela, também, o berço da formação ética e moral, dos direitos da personalidade, e de seu livre desenvolvimento.
Os direitos na família são complementares, e se atualizam nos vínculos afetivos. Direitos que estão em relação direta com os níveis de responsabilidade que cabe a cada um, conforme o grau de maturidade e consequente hierarquia.
A diferença entre os estados — pais, filhos, e outros — é característica essencial da família, e a divisão entre gerações é sua norma fundante. Lei conhecida, a partir da psicanálise e da sociologia, como o tabu do incesto. E este transcende, em muito, as manifestações da sexualidade explícita; demarca as diferenças quanto à maturidade psíquica, emocional, e quanto à maior vulnerabilidade dos filhos. Lei que delimita as diferenças quanto aos estados e exercício das funções e, portanto, da autoridade dos pais. É uma lei que marca a proibição da satisfação direta dos desejos, das vontades, o que cabe aos pais dar o exemplo e zelar.
Quando as diferenças entre as funções e gerações não são respeitadas a família torna-se disfuncional. E pode sê-lo de diversas formas.
Em caso mais extremo, que aqui nos interessa, ocorre a perversão da lei que marca não só a divisão das gerações (o referido tabu do incesto) mas a necessária submissão às leis que regem o relacionamento entre os indivíduos. A perversão implica em grave desconsideração das diferenças, e no uso mais do que indevido do poder de quem goza e detém a autoridade em zelar pela finalidade da família. Finalidade de cuidado e de proteção dos afetivamente mais vulneráveis e de ensinamento de formas socialmente aceitas de satisfação dos impulsos. Na perversão, tal finalidade é desviada para a satisfação direta dos desejos e vontades, sendo os filhos cooptados nesta direção.
Outras instituições têm suas finalidades específicas: educacionais, profissionais, governamentais etc. Mas, a despeito das diferenças, estas outras organizações guardam relação com a estrutura familiar, com os princípios que as constituem, com as formas de exercício de poder e de autoridade, e com os tipos de vínculos que pautam as relações.
Não podemos esquecer, e pelo contrário cabe aqui enfatizar, que os vínculos que formam as relações são, sobretudo, de natureza afetiva, do que decorre a grande vulnerabilidade aos tipos de liderança de quem exerce a autoridade e o poder.
Podemos traçar um paralelo entre os tipos de vínculos que estabelecemos na família e aqueles que caracterizam a forma de exercício de poder pelas lideranças, alvo dos afetos, também em outras instituições: mais autoritário, mais democrático, perverso e corrupto.
O primeiro caso, de vínculo autoritário, representa uma forma mais antiga, patriarcal, de exercício do poder não equilibrado entre os pais, e destes com os filhos.
O segundo caso, de vínculos mais democráticos, representa uma forma mais contemporânea de exercício de poder e de autoridade, pautada pela igualdade entre os gêneros e a consciência da vulnerabilidade dos filhos e assim, de seu superior interesse.
Já a forma perversa implica na corrupção, por meio de técnicas de sedução, para o exercício do poder.
Nas primeiras formas, autoritária e democrática, o desejo, as vontades, se submetem às formas socialmente aceitas de expressão — seguem a lei. No último caso, o da perversão e da corrupção, busca-se a satisfação do desejo, das vontades, de forma direta, sem a intermediação da lei.
Certo é que o exercício da autoridade e seu questionamento faz parte do cotidiano das famílias. Em momentos de crise com os filhos, e de ameaça ao respeito e exercício das funções e ao poder familiar, pode-se lançar mão da justificativa: “é assim porque eu mando!”, “minha vontade é uma ordem!”. Ou ainda, a justificativa pode vir sob a forma: “porque sou seu pai”, “porque sou sua mãe”. E, finalmente, em outras, de forma manifesta ou velada: “se você me obedecer, se fizer o que eu quero, terá tal ou qual vantagem”, e, não raro, “se concordar comigo permito que participe de situações de prazer, próprias dos adultos e/ou proibidas”.
Nos dois primeiros casos, a alusão é à função, materna e paterna, cuja autoridade é legitimada pela própria lei de constituição (com letra minúscula) da família — a diferença entre gerações. O múnus que aos pais cabe transcende meras vontades e impulsos pessoais. Em outras palavras a vontade dos pais encarna, mas não é, a lei.
Na situação autoritária, o poder se baseia numa hierarquia marcada pela submissão, pelo medo e extremo respeito. Uma forma mais repressora e prevalente nos sistemas patriarcais e paternalistas.
No segundo caso, democrático, o poder se baseia não só na hierarquia mas também no respeito conquistado e no diálogo. Os membros da família têm voz, dentro de um espírito de proteção dos direitos da personalidade de todos, levando-se em conta as vulnerabilidades, diferenças de idade, de maturidade e de necessidades. A autoridade se legitima pelo exercício da função na equalização e ponderação dos direitos. Uma forma mais contemporânea de funcionamento das famílias, de igualdade entre os pais, e do superior interesse dos filhos. Uma família democrática.
E, nos dois casos, mais autoritário e mais democrático, está presente, embora de forma diferente, a alteridade — o outro é considerado enquanto tal — e, assim, se mantém a finalidade da família e as diferenças que a constitui.
Mas, na situação perversa, a função ao invés de ser baseada no exercício de autoridade legítima — em benefício da instituição familiar —, não só se reveste de autoritarismo, muitas vezes travestido de paternalismo e democracia, mas perverte a lei. Esta é utilizada com fins egoístas e não em benefício de todos. Os pais acreditam ser a lei, e não seus representantes; lei ditada conforme seus desejos, e não se submetendo à lei propriamente dita — esta não tem valor em si mesma, mas pela finalidade com a qual se a utiliza. Perde-se a característica de alteridade, impera o egoísmo e a satisfação não mediada das vontades — a existência do outro só é reconhecida enquanto satisfaz a vontade de quem detém a autoridade.
Neste terceiro caso, em que a perversão da finalidade da família e a corrupção são mais explícitas, a autoridade se estabelece por meio do medo, submissão e sedução; a recompensa de quem se submete é existir para agradar à autoridade e com ela se identificar no usufruir aquilo que aos demais, na mesma condição, é proibido. Borra-se, em alguns aspectos, a diferença entre gerações que deveria ter como finalidade o cuidado e a proteção. Cria-se um conluio de satisfação entre a vontade de quem detém o poder e a daqueles que a ele se submetem. A corrupção é a perversão em funcionamento.
Em via de mão dupla, não podemos esquecer que na família não só se refletem os valores sociais, as leis das quais os pais devem ser porta-vozes, como grande é a influência daqueles que gozam de autoridade no meio social e público, e que exercem as funções relativas aos poderes constituídos. São figuras alvos de nossos afetos, de nossas emoções, de admiração e mesmo paixões, em um contexto mais autoritário, mais democrático e, ainda, mais corrupto e perverso. Contexto que pode ser referendado, ou não, por aqueles que são as figuras de referência por excelência — os pais. Estes detém um poder, uma autoridade, um múnus,uma responsabilidade na formação da personalidade que não podem, e não devem, obviamente, ser terceirizados. Famílias não infantilizadas constroem sólidas bases da sociedade.
Giselle Câmara Groeninga é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.
Revista Consultor Jurídico, 27 de março de 2016, 8h00
http://www.conjur.com.br/2016-mar-27/processo-familiar-berco-formacao-familia-responsabilidade-corrupcao
Excelente matéria obrigado
ResponderExcluirBoa tarde Orlando. Também gostei muito da matéria.
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