A lenda de Procusto ilustra o perigo que se esconde por trás do sedutor discurso da “disciplina judiciária”, que busca impor, de forma pouco democrática, a “uniformização da jurisprudência” e a “padronização de procedimentos”, sem tolerar divergências e de modo a sufocar a autonomia dos juízes de primeira instância, em prejuízo do cidadão, que é o destinatário final da atividade jurisdicional.
Em nome de uma suposta “segurança jurídica”, a banalização das súmulas vinculantes e dos incidentes de uniformização pretende padronizar, compulsoriamente, todas as decisões judiciais, de modo a impedir interpretações divergentes, com o declarado propósito de “dar harmonia ao sistema” e reduzir o número de recursos.
Entretanto, é curioso notar que essa mesma retórica de SEGURANÇA E DISCIPLINA é adotada por todas as instituições autoritárias, que partem de ideias aparentemente inofensivas e até defensáveis: OBEDIÊNCIA e CONFORMIDADE. Esses conceitos são indispensáveis ao bom funcionamento de qualquer grupo social e, portanto, são facilmente assimilados por todos os seus integrantes, sem maiores questionamentos.
Porém, quando esses valores, em princípio virtuosos, passam a ser usados como instrumentos de dominação e submissão, exercendo-se o poder hierárquico de forma arbitrária para sufocar as divergências e reprimir a subjetividade dos indivíduos, estamos diante de um sistema fadado ao totalitarismo e à autofagia.
“Obediência” e “Conformidade” são conceitos essenciais para compreendermos por que o velho discurso de “Disciplina” e “Ordem” é tão atraente para a maioria das pessoas e, ao mesmo tempo, uma armadilha perigosa para a sociedade, podendo levar ao colapso das instituições e a degradação do ser humano. Sem “obediência” e “conformidade” não existiriam os grandes holocaustos, os genocídios, as inquisições, os atentados terroristas, enfim, a chamada “banalização do mal”.
Comecemos falando de “OBEDIÊNCIA”. Será mesmo uma virtude absoluta, como insistem os defensores da chamada “disciplina judiciária”? Em nome da obediência às Leis e às Instituições, sempre em nome da Ordem e da Disciplina, foram cometidas as maiores atrocidades da história da humanidade.
Por exemplo, o que leva uma pessoa que se diz “cidadão de bem” a obedecer cegamente uma ordem absurda, que pode resultar no sofrimento ou na morte de outro ser humano? No aclamado romance “O Leitor”, de Bernhard Schlink, temos um diálogo muito eloquente que nos ajuda a refletir sobre essa tormentosa questão. Na Alemanha do pós-guerra, Hanna, guarda de um campo de concentração nazista, responde às perguntas do magistrado que a interroga:
Juiz – Por que vocês não desobedeceram à ordem?
Hanna - Obviamente, não podíamos. Éramos guardas. Nossa missão era guardar os prisioneiros. Não podíamos deixá-los fugir.
Juiz - Entendo. Se escapassem, seriam culpadas, acusadas, ou até executadas.
Hanna - Não! Se abríssemos as portas, seria um caos. Como iríamos restaurar a ordem? Aconteceu rápido. Estava nevando, haviam bombas, haviam chamas, por toda a vila. Então começaram os gritos. Ficava pior e pior. Todos iriam correr, não podíamos deixá-los escaparem. Não podíamos. Éramos responsáveis por eles!
Juiz - Então, não sabia o que estava acontecendo? Não sabia e fez uma escolha. Deixou todos morrerem, ao invés de arriscar deixá-los escapar.
(O leitor, 2008, 69´56´´ - Bernhard Schlink)
A resposta de Hanna está longe de ser uma ficção. A realidade é ainda mais cruel. “Estávamos apenas cumprindo a lei” ou “seguindo ordens superiores” também foram as principais alegações dos oficiais e juízes alemães julgados em Nuremberg por terem colaborado com o “terceiro reich”, como se o estado de “obediência” fosse um álibi moral capaz de lhes eximir de toda a culpa. Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, afirmava não entender porque era estava sendo condenado se era apenas um cumpridor de ordens. Ele dizia“: “Não entendo o que quer dizer com ficar perturbado com estas coisas porque eu, pessoalmente, não assassinei ninguém. Era apenas o diretor do programa de extermínio de Auschwitz, um funcionário público cumprindo com o seu dever.”
Os tripulantes do Enola Gay, responsáveis por lançarem as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, diziam não se sentir culpados pelas milhares de vítimas que foram queimadas vivas, muitas delas mulheres, idosos e crianças. Afirmavam que eles apenas apertaram o botão, mas quem tomou a decisão foi o Presidente Harry Truman. Mais uma vez, os executores alegavam que apenas seguiram ordens que não poderiam desobedecer.
Alegação semelhante foi utilizada pelos policiais responsáveis pelo Massacre de Sharpeville – Africa de Sul, que, em 21 de Março de 1960, no auge da política do Apartheid, quando reprimiram uma manifestação pacífica de um movimento pelo direitos da maioria negra, provocando a morte de 69 pessoas e ferindo outras 180. Levados ao Tribunal, os assassinos usaram, em sua defesa o argumento de que somente obedeceram ordens superiores e que estavam cumprindo a lei. Por sinal, o mesmo argumento utilizado pelos réus nos massacres do Carandiru e em Eldorado de Carajás. Todos, sem exceção, eram cumpridores de ordens, sempre em nome da Lei e da Disciplina.
Esse “estado de obediência” parece funcionar como um anestésico moral que silencia o senso crítico e entorpece a consciência para que o executor não tenha que lidar com as consequências das suas escolhas, eximindo-se de sua responsabilidade individual. Lembra o adestramento pavloviano que transformava seres humanos em autômatos irracionais.
Stanley Milgram (1933-1984), psicólogo americano da Universidade de Yale, conduziu uma série de experimentos sobre conformismo e obediência à autoridade. De descendência judaica, seu objetivo era tentar entender os limites da nossa consciência e os mecanismos psicológicos da obediência, em um esforço para encontrar alguma explicação para os atos abomináveis de extermínio de milhares de judeus durante a segunda guerra mundial (1).
No mais famoso desses experimentos, conhecido como “O Aluno e o Professor”, Milgram recrutou por anúncios de jornal cidadãos comuns através da oferta de 4 dólares para a participação em um “estudo sobre o aprendizado.” . Quando o candidato chegava ao laboratório experimental, a ele era atribuído, por um sorteio fictício, o papel de “professor” e lhe pediam que lesse uma série de pares de palavras para “o aluno”, um ator que estava do outro lado de uma parede. Eles não podiam se ver, mas um ouvia o que o outro dizia. Em seguida, o “professor”, sem saber que tudo não passava de uma simulação, iria testar no aluno a capacidade de recordar os pares através da leitura da primeira palavra em cada par.
Sempre que o aluno cometesse um erro, “o professor” era instruído, pelo pesquisador, a administrar a punição na forma de choque elétrico, cuja intensidade ia aumentando, progressivamente, ao longo do experimento. O pesquisador intervia de forma impositiva, valendo-se da sua autoridade, para ordenar que o teste prosseguisse até o final, mesmo quando o “professor” pensava em desistir ao ouvir os gritos de dor do “aluno”, do outro lado da parede.
O resultado foi surpreendente: de cada dez participantes, seis a sete prosseguiam até o final, obedecendo, cegamente, as ordens do pesquisador, sem questioná-las, mesmo quando o “aluno” pedia que parassem. E não eram pessoas sádicas ou desumanas: as reações corporais e as expressões faciais demonstravam que o “professor” também estava sofrendo, angustiado com a dor que infligia ao “aluno”. Muitos até chegavam a dizer que queriam parar, que não achavam aquilo certo, mas, diante da ordem da “Autoridade”, representada pelo pesquisador, prosseguiam com o experimento.
Detalhe: os “professores” não receberam nenhuma ameaça e o valor que ganharam pela participação era irrisório. Eles simplesmente obedeciam pela reverência à autoridade. Em uma entrevista posterior, questionadas sobre o motivo de terem prosseguido, mesmo contra a sua vontade, muitos disseram que simplesmente estavam “cumprindo ordens” (2).
Anos depois, revendo seu experimento, Milgran observou que “pessoas comuns, simplesmente fazendo seu trabalho, e sem qualquer hostilidade particular de sua parte, podem se tornar agentes em um terrível processo destrutivo. Além disso, mesmo quando os efeitos destrutivos de seu trabalho se tornam manifestamente claros, e eles são solicitados a realizar ações incompatíveis com padrões fundamentais de moralidade, relativamente poucas pessoas têm os recursos necessários para resistir à autoridade.” (3).
Em 2010, um reality show inspirado no experimento de Milgram causou comoção nacional na França. Em "Le Jeu de la Mort" ("O jogo da morte"), os participantes, que não sabiam que faziam parte de uma encenação e não concorriam a nenhum prêmio em dinheiro, davam choques de até 460 volts em outro competidor, que, neste caso, era um ator. Um documentário homônimo da TV Francesa mostrou como, apesar de ouvir os gritos da vítima - supostamente real -, oito em cada dez participantes cumpriram até o fim as ordens da apresentadora e chegaram a dar descargas elétricas de até 460 volts em seus oponentes, momento em que perceberam que a pessoa que recebia o choque simulado não dava mais sinais de vida.
A reação dos participantes, que tiveram suas expressões filmadas, dava a entender que não se tratava de sadismo ou de ter prazer na dor alheia. Os jogadores estavam profundamente incomodados com aquela situação. Alguns demonstravam sinais evidentes de angústia e estresse emocional, mas, mesmo contra os seus valores morais e o seu senso crítico, a maioria obedeceu, cegamente, às ordens da autoridade constituída (4).
Em pesquisa publicada na revista Current Biology, em 2016, Patrick Haggard, neurocientista da University College London, resolveu fez novos testes inspirados na experiência de Milgran, procurando uma explicação biológica para esse comportamento psicossocial. Mesmo variando o tipo de punição (por exemplo, uma perda financeira em vez de um choque elétrico) e o tempo de resposta, Haggard chegou a conclusão muito semelhante, observando que o cérebro de quem está recebendo ordens reage de forma bem diferente do que o daquele que está tomando suas próprias decisões, de modo que fazer a vontade alheia nos faz sentir menos responsáveis pelas nossas escolhas (5).
Porém, quando se trata de uma decisão coletiva, que envolve mais de um indivíduo, um outro conceito se torna igualmente indispensável para explicar a submissão cega à autoridade: a uniformização alienante, também conhecida como CONFORMIDADE.
Solomon Asch, psicólogo polonês radicado nos Estados Unidos, foi o idealizador da mais conhecida experiência de conformidade social. Ele reuniu diversos grupos de 8 indivíduos e pediu que cada um deles dissesse qual das linhas que estava vendo era a de maior comprimento. Uma pergunta muito simples, com resposta óbvia, que dispensava maiores conhecimentos. Em cada grupo, sete dos oito participantes eram atores que faziam parte do experimento e apenas um era o sujeito cujo comportamento seria observado, chamado de “participante”. Os atores eram instruídos a insistirem em uma resposta errada. Mesmo diante da evidência ocular e, por mais simples que fosse a pergunta, apenas três de cada dez participantes davam a resposta correta. Os demais, sete em cada dez, cediam à pressão do grupo e se “conformavam” com a reposta errada (6). Muitos anos antes de Nelson Rodrigues, Asch já comprovava a máxima de que “a unanimidade é burra”.
É o chamado efeito Bandwagon ou efeito-manada. Experiência semelhante, também inspirada nas pesquisas de Solomon Asch, foi reproduzida no TESTE DO ELEVADOR, no qual uma câmera escondida filma o comportamento dos “passageiros” dentro do ascensor, revelando que mais de noventa por cento das pessoas tende a ajeitar seu corpo na mesma posição dos outros usuários, de forma instintiva, sem qualquer questionamento racional (7). Não por acaso os experimentos de Conformidade de Asch vêm sendo objeto de discussão no campo jurídico, nos estudos sobre o Tribunal de Juri e nos julgamentos proferidos por órgãos colegiados, a fim de analisar a que ponto chega o poder de influência de um grupo sobre a consciência de cada indivíduo.
O estudo sobre o fenômeno da “conformidade” e a influência do grupo sobre a opinião do indivíduo, a ponto de fazê-lo negar suas próprias convicções para se amoldar ao coletivo em que está inserido, também foi objeto de inúmeras outras experiências, como, por exemplo, o polêmico Experimento da Prisão de Stanford (8), liderado pelo professor Phillip Zimbardo, da Universidade Stanford (EUA), no qual pessoas, aparentemente, decentes e bem intencionadas, quando divididas em equipes de “prisioneiros” e “guardas”, acabaram sucumbindo à pressão do grupo e praticando atos degradantes, inclusive com torturas e humilhações (9). Nessa mesma linha são os estudos de Muzafer Sherif sobre a NORMALIZAÇÃO, cujas evidências empíricas demonstraram a influência do grupo sobre o pensamento individual e sobre a criação de normas (10)
Os experimentos de Asch e Zimbardo trazem à lembrança o premiado filme alemão “A ONDA” (título original: Die Welle), dirigido por Dennis Gansel, que, a partir do microcosmos de uma escola, na qual os estudantes participam de um experimento sobre o totalitarismo, tenta entender as origens de um regime autoritário e os fatores que levam à despersonalização dos indivíduos. Mais uma vez, obediência cega e conformidade levam a escolhas erradas e, paradoxalmente, é o excesso de ordem que produz o caos.
Portanto, precisamos tomar muito cuidado com a onda autoritária que tenta impor OBEDIÊNCIA CEGA e CONFORMIDADE a todas as instâncias do Poder Judiciário porque, por trás do discurso que fala em “Disciplina Judiciária” e em “Segurança Jurídica”, o que se pretende é sufocar as divergências e acabar com a autonomia dos juízes de primeira instância, instrumentalizando as súmulas vinculantes e os incidentes de uniformização como forma de reafirmação do poder de uma cúpula cada vez mais distante da realidade cotidiana.
O maior prejudicado será o cidadão, na medida em que o juiz se transformará em mero carimbador de súmulas, sem ter a liberdade indispensável para aplicar à justiça atendendo às peculiaridades de cada caso concreto. Em outra frente, a padronização de procedimentos, imposta de cima para baixo, visando uniformizar realidades tão distintas, com metas inatingíveis, poderá transformar as unidades judiciárias em verdadeiros “fast food” do Direito, lembrando as linhas de produção fordista, como se cada processo fosse apenas um número a ser eliminado, esquecendo-se que os litigantes são seres humanos que estão tratando de questões essenciais para as suas vidas.
Não podemos perder de vista que a função mais nobre da atividade jurisdicional não é apenas resolver o litígio ou acabar com um processo, mas promover a JUSTA composição da lide, que leve à pacificação social por meio da efetiva distribuição da Justiça. Para tanto, o Poder Judiciário precisa se libertar da cama de Procusto.
Comecemos falando de “OBEDIÊNCIA”. Será mesmo uma virtude absoluta, como insistem os defensores da chamada “disciplina judiciária”? Em nome da obediência às Leis e às Instituições, sempre em nome da Ordem e da Disciplina, foram cometidas as maiores atrocidades da história da humanidade.
Por exemplo, o que leva uma pessoa que se diz “cidadão de bem” a obedecer cegamente uma ordem absurda, que pode resultar no sofrimento ou na morte de outro ser humano? No aclamado romance “O Leitor”, de Bernhard Schlink, temos um diálogo muito eloquente que nos ajuda a refletir sobre essa tormentosa questão. Na Alemanha do pós-guerra, Hanna, guarda de um campo de concentração nazista, responde às perguntas do magistrado que a interroga:
Juiz – Por que vocês não desobedeceram à ordem?
Hanna - Obviamente, não podíamos. Éramos guardas. Nossa missão era guardar os prisioneiros. Não podíamos deixá-los fugir.
Juiz - Entendo. Se escapassem, seriam culpadas, acusadas, ou até executadas.
Hanna - Não! Se abríssemos as portas, seria um caos. Como iríamos restaurar a ordem? Aconteceu rápido. Estava nevando, haviam bombas, haviam chamas, por toda a vila. Então começaram os gritos. Ficava pior e pior. Todos iriam correr, não podíamos deixá-los escaparem. Não podíamos. Éramos responsáveis por eles!
Juiz - Então, não sabia o que estava acontecendo? Não sabia e fez uma escolha. Deixou todos morrerem, ao invés de arriscar deixá-los escapar.
(O leitor, 2008, 69´56´´ - Bernhard Schlink)
A resposta de Hanna está longe de ser uma ficção. A realidade é ainda mais cruel. “Estávamos apenas cumprindo a lei” ou “seguindo ordens superiores” também foram as principais alegações dos oficiais e juízes alemães julgados em Nuremberg por terem colaborado com o “terceiro reich”, como se o estado de “obediência” fosse um álibi moral capaz de lhes eximir de toda a culpa. Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, afirmava não entender porque era estava sendo condenado se era apenas um cumpridor de ordens. Ele dizia“: “Não entendo o que quer dizer com ficar perturbado com estas coisas porque eu, pessoalmente, não assassinei ninguém. Era apenas o diretor do programa de extermínio de Auschwitz, um funcionário público cumprindo com o seu dever.”
Os tripulantes do Enola Gay, responsáveis por lançarem as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, diziam não se sentir culpados pelas milhares de vítimas que foram queimadas vivas, muitas delas mulheres, idosos e crianças. Afirmavam que eles apenas apertaram o botão, mas quem tomou a decisão foi o Presidente Harry Truman. Mais uma vez, os executores alegavam que apenas seguiram ordens que não poderiam desobedecer.
Alegação semelhante foi utilizada pelos policiais responsáveis pelo Massacre de Sharpeville – Africa de Sul, que, em 21 de Março de 1960, no auge da política do Apartheid, quando reprimiram uma manifestação pacífica de um movimento pelo direitos da maioria negra, provocando a morte de 69 pessoas e ferindo outras 180. Levados ao Tribunal, os assassinos usaram, em sua defesa o argumento de que somente obedeceram ordens superiores e que estavam cumprindo a lei. Por sinal, o mesmo argumento utilizado pelos réus nos massacres do Carandiru e em Eldorado de Carajás. Todos, sem exceção, eram cumpridores de ordens, sempre em nome da Lei e da Disciplina.
Esse “estado de obediência” parece funcionar como um anestésico moral que silencia o senso crítico e entorpece a consciência para que o executor não tenha que lidar com as consequências das suas escolhas, eximindo-se de sua responsabilidade individual. Lembra o adestramento pavloviano que transformava seres humanos em autômatos irracionais.
Stanley Milgram (1933-1984), psicólogo americano da Universidade de Yale, conduziu uma série de experimentos sobre conformismo e obediência à autoridade. De descendência judaica, seu objetivo era tentar entender os limites da nossa consciência e os mecanismos psicológicos da obediência, em um esforço para encontrar alguma explicação para os atos abomináveis de extermínio de milhares de judeus durante a segunda guerra mundial (1).
No mais famoso desses experimentos, conhecido como “O Aluno e o Professor”, Milgram recrutou por anúncios de jornal cidadãos comuns através da oferta de 4 dólares para a participação em um “estudo sobre o aprendizado.” . Quando o candidato chegava ao laboratório experimental, a ele era atribuído, por um sorteio fictício, o papel de “professor” e lhe pediam que lesse uma série de pares de palavras para “o aluno”, um ator que estava do outro lado de uma parede. Eles não podiam se ver, mas um ouvia o que o outro dizia. Em seguida, o “professor”, sem saber que tudo não passava de uma simulação, iria testar no aluno a capacidade de recordar os pares através da leitura da primeira palavra em cada par.
Sempre que o aluno cometesse um erro, “o professor” era instruído, pelo pesquisador, a administrar a punição na forma de choque elétrico, cuja intensidade ia aumentando, progressivamente, ao longo do experimento. O pesquisador intervia de forma impositiva, valendo-se da sua autoridade, para ordenar que o teste prosseguisse até o final, mesmo quando o “professor” pensava em desistir ao ouvir os gritos de dor do “aluno”, do outro lado da parede.
O resultado foi surpreendente: de cada dez participantes, seis a sete prosseguiam até o final, obedecendo, cegamente, as ordens do pesquisador, sem questioná-las, mesmo quando o “aluno” pedia que parassem. E não eram pessoas sádicas ou desumanas: as reações corporais e as expressões faciais demonstravam que o “professor” também estava sofrendo, angustiado com a dor que infligia ao “aluno”. Muitos até chegavam a dizer que queriam parar, que não achavam aquilo certo, mas, diante da ordem da “Autoridade”, representada pelo pesquisador, prosseguiam com o experimento.
Detalhe: os “professores” não receberam nenhuma ameaça e o valor que ganharam pela participação era irrisório. Eles simplesmente obedeciam pela reverência à autoridade. Em uma entrevista posterior, questionadas sobre o motivo de terem prosseguido, mesmo contra a sua vontade, muitos disseram que simplesmente estavam “cumprindo ordens” (2).
Anos depois, revendo seu experimento, Milgran observou que “pessoas comuns, simplesmente fazendo seu trabalho, e sem qualquer hostilidade particular de sua parte, podem se tornar agentes em um terrível processo destrutivo. Além disso, mesmo quando os efeitos destrutivos de seu trabalho se tornam manifestamente claros, e eles são solicitados a realizar ações incompatíveis com padrões fundamentais de moralidade, relativamente poucas pessoas têm os recursos necessários para resistir à autoridade.” (3).
Em 2010, um reality show inspirado no experimento de Milgram causou comoção nacional na França. Em "Le Jeu de la Mort" ("O jogo da morte"), os participantes, que não sabiam que faziam parte de uma encenação e não concorriam a nenhum prêmio em dinheiro, davam choques de até 460 volts em outro competidor, que, neste caso, era um ator. Um documentário homônimo da TV Francesa mostrou como, apesar de ouvir os gritos da vítima - supostamente real -, oito em cada dez participantes cumpriram até o fim as ordens da apresentadora e chegaram a dar descargas elétricas de até 460 volts em seus oponentes, momento em que perceberam que a pessoa que recebia o choque simulado não dava mais sinais de vida.
A reação dos participantes, que tiveram suas expressões filmadas, dava a entender que não se tratava de sadismo ou de ter prazer na dor alheia. Os jogadores estavam profundamente incomodados com aquela situação. Alguns demonstravam sinais evidentes de angústia e estresse emocional, mas, mesmo contra os seus valores morais e o seu senso crítico, a maioria obedeceu, cegamente, às ordens da autoridade constituída (4).
Em pesquisa publicada na revista Current Biology, em 2016, Patrick Haggard, neurocientista da University College London, resolveu fez novos testes inspirados na experiência de Milgran, procurando uma explicação biológica para esse comportamento psicossocial. Mesmo variando o tipo de punição (por exemplo, uma perda financeira em vez de um choque elétrico) e o tempo de resposta, Haggard chegou a conclusão muito semelhante, observando que o cérebro de quem está recebendo ordens reage de forma bem diferente do que o daquele que está tomando suas próprias decisões, de modo que fazer a vontade alheia nos faz sentir menos responsáveis pelas nossas escolhas (5).
Porém, quando se trata de uma decisão coletiva, que envolve mais de um indivíduo, um outro conceito se torna igualmente indispensável para explicar a submissão cega à autoridade: a uniformização alienante, também conhecida como CONFORMIDADE.
Solomon Asch, psicólogo polonês radicado nos Estados Unidos, foi o idealizador da mais conhecida experiência de conformidade social. Ele reuniu diversos grupos de 8 indivíduos e pediu que cada um deles dissesse qual das linhas que estava vendo era a de maior comprimento. Uma pergunta muito simples, com resposta óbvia, que dispensava maiores conhecimentos. Em cada grupo, sete dos oito participantes eram atores que faziam parte do experimento e apenas um era o sujeito cujo comportamento seria observado, chamado de “participante”. Os atores eram instruídos a insistirem em uma resposta errada. Mesmo diante da evidência ocular e, por mais simples que fosse a pergunta, apenas três de cada dez participantes davam a resposta correta. Os demais, sete em cada dez, cediam à pressão do grupo e se “conformavam” com a reposta errada (6). Muitos anos antes de Nelson Rodrigues, Asch já comprovava a máxima de que “a unanimidade é burra”.
É o chamado efeito Bandwagon ou efeito-manada. Experiência semelhante, também inspirada nas pesquisas de Solomon Asch, foi reproduzida no TESTE DO ELEVADOR, no qual uma câmera escondida filma o comportamento dos “passageiros” dentro do ascensor, revelando que mais de noventa por cento das pessoas tende a ajeitar seu corpo na mesma posição dos outros usuários, de forma instintiva, sem qualquer questionamento racional (7). Não por acaso os experimentos de Conformidade de Asch vêm sendo objeto de discussão no campo jurídico, nos estudos sobre o Tribunal de Juri e nos julgamentos proferidos por órgãos colegiados, a fim de analisar a que ponto chega o poder de influência de um grupo sobre a consciência de cada indivíduo.
O estudo sobre o fenômeno da “conformidade” e a influência do grupo sobre a opinião do indivíduo, a ponto de fazê-lo negar suas próprias convicções para se amoldar ao coletivo em que está inserido, também foi objeto de inúmeras outras experiências, como, por exemplo, o polêmico Experimento da Prisão de Stanford (8), liderado pelo professor Phillip Zimbardo, da Universidade Stanford (EUA), no qual pessoas, aparentemente, decentes e bem intencionadas, quando divididas em equipes de “prisioneiros” e “guardas”, acabaram sucumbindo à pressão do grupo e praticando atos degradantes, inclusive com torturas e humilhações (9). Nessa mesma linha são os estudos de Muzafer Sherif sobre a NORMALIZAÇÃO, cujas evidências empíricas demonstraram a influência do grupo sobre o pensamento individual e sobre a criação de normas (10)
Os experimentos de Asch e Zimbardo trazem à lembrança o premiado filme alemão “A ONDA” (título original: Die Welle), dirigido por Dennis Gansel, que, a partir do microcosmos de uma escola, na qual os estudantes participam de um experimento sobre o totalitarismo, tenta entender as origens de um regime autoritário e os fatores que levam à despersonalização dos indivíduos. Mais uma vez, obediência cega e conformidade levam a escolhas erradas e, paradoxalmente, é o excesso de ordem que produz o caos.
Portanto, precisamos tomar muito cuidado com a onda autoritária que tenta impor OBEDIÊNCIA CEGA e CONFORMIDADE a todas as instâncias do Poder Judiciário porque, por trás do discurso que fala em “Disciplina Judiciária” e em “Segurança Jurídica”, o que se pretende é sufocar as divergências e acabar com a autonomia dos juízes de primeira instância, instrumentalizando as súmulas vinculantes e os incidentes de uniformização como forma de reafirmação do poder de uma cúpula cada vez mais distante da realidade cotidiana.
O maior prejudicado será o cidadão, na medida em que o juiz se transformará em mero carimbador de súmulas, sem ter a liberdade indispensável para aplicar à justiça atendendo às peculiaridades de cada caso concreto. Em outra frente, a padronização de procedimentos, imposta de cima para baixo, visando uniformizar realidades tão distintas, com metas inatingíveis, poderá transformar as unidades judiciárias em verdadeiros “fast food” do Direito, lembrando as linhas de produção fordista, como se cada processo fosse apenas um número a ser eliminado, esquecendo-se que os litigantes são seres humanos que estão tratando de questões essenciais para as suas vidas.
Não podemos perder de vista que a função mais nobre da atividade jurisdicional não é apenas resolver o litígio ou acabar com um processo, mas promover a JUSTA composição da lide, que leve à pacificação social por meio da efetiva distribuição da Justiça. Para tanto, o Poder Judiciário precisa se libertar da cama de Procusto.
NOTAS
1.https://www.youtube.com/watch?v=zAh-LGLsQO4
2.Milgram, S. (1963). Behavioral study of obedience. Journal of Abnormal and Social Psychology, 67, 371-378.
3. Milgram, S. (1974). Obedience to authority: An experimental view. Harpercollins.
4.http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticia/2010/03/falso-reality-show-levanta-polemica-e-choca-a-franca-2843206.html
https://www.youtube.com/watch?v=3yz-P5CWE1E
5.http://elpais.com/elpais/2016/02/22/ciencia/1456131231_900861.html
6.Asch, S.E. (1956). Studies of independence and conformity. A minority of one against a unanimous majority. Psychological Monographs, 70(9), 1–70.
https://www.youtube.com/watch?v=tAivP2xzrng
7.https://www.youtube.com/watch?v=S0xCv_S2JJM
8.https://pt.wikipedia.org/wiki/Experimento_de_aprisionamento_de_Stanford
9.https://www.youtube.com/watch?v=ps3fKeYxly8
10.https://www.youtube.com/watch?v=zSal8A6C4-w
JANON, Renato da Fonseca. A síndrome de procusto: o perigoso discurso da “disciplina judiciária”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5132, 20 jul. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/58679>. Acesso em: 3 set. 2017.
1.https://www.youtube.com/watch?v=zAh-LGLsQO4
2.Milgram, S. (1963). Behavioral study of obedience. Journal of Abnormal and Social Psychology, 67, 371-378.
3. Milgram, S. (1974). Obedience to authority: An experimental view. Harpercollins.
4.http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticia/2010/03/falso-reality-show-levanta-polemica-e-choca-a-franca-2843206.html
https://www.youtube.com/watch?v=3yz-P5CWE1E
5.http://elpais.com/elpais/2016/02/22/ciencia/1456131231_900861.html
6.Asch, S.E. (1956). Studies of independence and conformity. A minority of one against a unanimous majority. Psychological Monographs, 70(9), 1–70.
https://www.youtube.com/watch?v=tAivP2xzrng
7.https://www.youtube.com/watch?v=S0xCv_S2JJM
8.https://pt.wikipedia.org/wiki/Experimento_de_aprisionamento_de_Stanford
9.https://www.youtube.com/watch?v=ps3fKeYxly8
10.https://www.youtube.com/watch?v=zSal8A6C4-w
JANON, Renato da Fonseca. A síndrome de procusto: o perigoso discurso da “disciplina judiciária”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5132, 20 jul. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/58679>. Acesso em: 3 set. 2017.
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