Aproveitando que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) completou 12 anos em agosto, volto a tratar da violência patrimonial contra a mulher, uma forma invisível de violência doméstica que costuma passar despercebida no bojo dos litígios conjugais. Tenho chamado a atenção para esse tema nos últimos anos, mas, infelizmente, vejo que quase nada mudou no panorama da violência doméstica patrimonial nesse período[1].
A Lei Maria da Penha, como se sabe, não criou novos tipos penais, mas propiciou uma releitura dos tipos penais existentes, ao mesmo tempo em que assegurou, no âmbito do processo penal, um tratamento diferenciado e protetivo da mulher (discriminação positiva), de modo a suprir as diferenças decorrentes do gênero. Ela mudou a forma de se interpretar a tipificação penal tradicional, ampliando o conceito de violência doméstica para abarcar certas condutas que antes eram excluídas dos tipos penais.
Além da violência física, sempre a face mais chocante da violência doméstica, a lei elasteceu a moldura normativa, possibilitando a incorporação na tipificação de outras formas de violência doméstica e familiar em razão do gênero, as quais, apesar de muito frequentes, eram pouco invocadas como instrumentos de proteção à mulher agredida. Entre elas, a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades[2]. Em outras palavras, a violência patrimonial está nucleada em três condutas: subtrair, destruir e reter.
O verbo subtrair conduz inicialmente a um tipo penal por todos conhecido: o furto, previsto no artigo 155 do CP. Se a subtração se deu com emprego de violência, temos o tipo denominado roubo. Assim, incorre nessa conduta típica tanto o cônjuge ou companheiro que subtrai às escondidas valores da mulher para compra de bebidas ou drogas (situações mais comuns) como aquele que subtrai da mulher a parte que lhe cabia dos bens comuns, alienando o automóvel ou os móveis da casa ou até mesmo o animal de estimação. Às vezes a subtração ocorre com finalidade de causar dor ou dissabor à mulher, pouco importando o valor dos bens subtraídos. Evidentemente que não é todo e qualquer furto contra a mulher, ainda que praticado por ex-cônjuge ou ex-companheiro, que irá caracterizar a violência patrimonial. É preciso que a subtração ocorra em situação de violência doméstica, ou seja, em razão do gênero.
No tocante à destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho e documentos pessoais, o tipo penal correspondente é o crime de dano, previsto no artigo 163 do CP. Se o crime é cometido com violência à pessoa ou grave ameaça, com emprego de substância inflamável ou explosiva, ou ainda por motivo egoístico (como é o caso do ciúme excessivo), temos o crime de dano qualificado, cuja pena passa a ser de detenção, de 6 meses a 3 anos. Em regra, a apuração do crime de dano só se procede mediante queixa, ou seja, a ação penal é privada, salvo se houver emprego de violência ou grave ameaça, substância inflamável ou explosiva, quando a ação de privada passa a ser pública incondicionada.
Na maioria das situações, o crime de dano sempre está associado a outras formas de violência, como é o caso da ameaça, ou mesmo violência psicológica, como ocorre nas situações em que o agressor provoca a destruição de objetos de alto valor sentimental ou ainda a morte de animal de estimação, visando atingir a vítima em seu estado psíquico. Nesses casos, ocorrem dois crimes em concurso.
Outros tipos penais relacionados diretamente à conduta “destruir” estão dispostos nos artigos 151 e 305 do CP. O artigo 151 versa sobre o delito de violação de correspondência, que abrange a sonegação ou destruição de correspondência alheia, embora não fechada, e prevê pena de detenção, de 1 a 3 anos. O artigo 305 trata da destruição, supressão ou ocultação de documentos, condutas sancionadas com pena de reclusão, de 2 a 6 anos, e multa, se o documento é público, e de 1 a 5 anos de reclusão, se o documento é particular. No que se refere, especificamente, à ocultação (ou retenção) de documentos, se essa conduta impossibilitar o exercício de qualquer direito trabalhista pela mulher, tem-se caracterizado, ainda, o crime de frustração de direito assegurado por lei trabalhista, previsto no artigo 203 do CP, com pena de detenção de 1 ano a 2 anos e multa.
Finalmente, a violência patrimonial caracterizada pela conduta típica de reter bens ou valores tem a mesma natureza jurídica do seu tipo penal correspondente, que é a apropriação indébita, prevista no artigo 168 do CP. Especificamente quanto à retenção de bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer as necessidades do cônjuge ou companheiro, podemos vislumbrar uma série de condutas típicas e, portanto, criminosas, que não são levadas ao juízo competente para a devida apuração.
E como se materializa essa conduta de “reter bens, valores e direitos ou recursos econômicos”? Ora, as formas são as mais diversas e todos os que militam na advocacia de família as conhecem muito bem. O cônjuge meeiro que toma para si o quinhão dos bens móveis que deveria repassar à mulher, usufruindo sozinho dos frutos dos bens comuns, está se apropriando de bem móvel alheio. O meeiro deixa de repassar à meeira os dividendos das ações de uma sociedade que pertencem aos dois. A conduta do homem, recebedor da integralidade dos alugueres de imóvel pertencente a ambos os cônjuges ou conviventes, por exemplo, equivale à retenção ou apropriação de bens ou recursos econômicos, exatamente como previsto na Lei 11.340/2006. Ou seja, apropriação indébita cometida com violência doméstica, na modalidade violência patrimonial.
Também configura violência patrimonial, mediante a retenção de recursos econômicos, furtar-se dolosamente ao pagamento de pensão alimentíciaarbitrada em benefício da mulher[3]. O tipo previsto no artigo 168 é essencialmente comissivo, ou seja, praticado mediante a ação de apropriar-se, e o objeto material é a coisa móvel. O cônjuge alimentante que, mesmo dispondo de recursos econômicos, adota subterfúgios para não pagar ou para retardar o pagamento de verba alimentar está, em outras palavras, retendo ou se apropriando de valores que pertencem à mulher, com o agravante de tais recursos destinarem-se à própria sobrevivência daquele cônjuge. Aqui, além da apropriação indébita, a violência patrimonial também se materializa pela prática do crime de abandono material, previsto no artigo 244 do CP, cabendo lembrar que o CPC de 2015 é expresso ao determinar, no artigo 532, que verificada a conduta procrastinatória do executado (por crédito alimentar), o juiz deverá, ex officio, dar ciência ao Ministério Público dos indícios da prática do crime de abandono material. Todavia, apesar do caráter mandamental da disposição, poucos juízes de Família têm feito a necessária comunicação ao MP para apuração do crime, ainda quando expressamente requerido pelas vítimas. E nas raras vezes em que a comunicação é feita, raríssimas são as denúncias oferecidas[4].
Além das dificuldades que transcendem a legalidade, como é caso do silêncio, da omissão e da inatividade da vítima, fatores que só impulsionam o ciclo da violência, do ponto de vista estritamente legal, os principais empecilhos para instauração dos processos criminais visando à proteção patrimonial da mulher decorrem das imunidades localizadas nos artigos 181 e 182 do CP, que isentam de pena quem comete crimes contra o patrimônio em prejuízo do cônjuge, na constância da sociedade conjugal, admitindo-se, excepcionalmente, que se proceda mediante representação, se o cônjuge estiver judicialmente separado. Por óbvio a interpretação desses dispositivos deve permitir a sua atualização, e onde se lê “separação judicial”, deve-se incluir “separação de direito ou de fato”, enquanto que a palavra “cônjuge” é também compreensiva de “companheiro”.
Ou seja, enquanto não se consumar a separação de fato ou de direito, o divórcio ou a dissolução da união estável, praticamente nada poderia ser feito. Salvo se o crime for cometido com emprego de grave ameaça ou violência contra a pessoa, ou ainda quando a vítima for maior de 60 anos[5].
A interpretação jurisprudencial mais conservadora, e ainda vigente, não recepcionou a tese de que os artigos 181 e 182 do CP teriam sido derrogados pela Lei Maria da Penha, vale dizer, o entendimento no sentido de serem inaplicáveis os artigos 181 e 182 do CP aos crimes de violência doméstica e familiar. O STJ vem decidindo que esses dispositivos não foram afastados pela Lei Maria da Penha.
Isso não deve nos desanimar ou servir de desestímulo ao uso das ferramentas do Direito Penal contra a violência patrimonial praticada contra as mulheres. Se o cônjuge já estava divorciado, separado de direito ou separado de fato, se a união estável já estava dissolvida, ou se já havia cessado a relação íntima de afeto, deve ser feita a representação para instauração da persecução penal. Se houve emprego de violência ou grave ameaça, ou se a vítima for maior de 60 anos, a ação penal poderá ser instaurada independentemente de representação e ainda na constância do casamento ou da união estável.
[1] Ver, por todos: https://www.lex.com.br/doutrina_27138477_A_VIOLENCIA_PATRIMONIAL_CONTRA_A_MULHER_NOS_LITIGIOS_DE_FAMILIA.aspx
[2] Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: (...) IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
[3] Nesse sentido o enunciado aprovado no X Congresso Brasileiro de Direito de Família, em outubro de 2015: “Enunciado 20. O alimentante que, dispondo de recursos econômicos, adota subterfúgios para não pagar ou para retardar o pagamento de verba alimentar incorre na conduta descrita no art. 7º, inc. IV da Lei nº 11.340/2006 (violência patrimonial)”.
[4] PENAL. ABANDONO MATERIAL. DEIXAR DE PAGAR PENSÃO ALIMENTÍCIA JUDICIALMENTE FIXADA. DOLO CONFIGURADO. JUSTA CAUSA NÃO DEMONSTRADA. Aquele que deixa de prover a assistência ao filho menor, frustrando o pagamento de pensão alimentícia, sem demonstrar justa causa para o inadimplemento, responde pelo crime do art. 244 do Código Penal. (TJMG; APCR 1.0084.14.000322-3/001; Rel. Des. Júlio Cezar Guttierrez; Julg. 22/07/2015; DJEMG 28/07/2015).
[5] Art. 183 - Não se aplica o disposto nos dois artigos anteriores: I - se o crime é de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa;(...) III – se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. (Incluído pela Lei nº 10.741, de 2003).
[2] Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: (...) IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
[3] Nesse sentido o enunciado aprovado no X Congresso Brasileiro de Direito de Família, em outubro de 2015: “Enunciado 20. O alimentante que, dispondo de recursos econômicos, adota subterfúgios para não pagar ou para retardar o pagamento de verba alimentar incorre na conduta descrita no art. 7º, inc. IV da Lei nº 11.340/2006 (violência patrimonial)”.
[4] PENAL. ABANDONO MATERIAL. DEIXAR DE PAGAR PENSÃO ALIMENTÍCIA JUDICIALMENTE FIXADA. DOLO CONFIGURADO. JUSTA CAUSA NÃO DEMONSTRADA. Aquele que deixa de prover a assistência ao filho menor, frustrando o pagamento de pensão alimentícia, sem demonstrar justa causa para o inadimplemento, responde pelo crime do art. 244 do Código Penal. (TJMG; APCR 1.0084.14.000322-3/001; Rel. Des. Júlio Cezar Guttierrez; Julg. 22/07/2015; DJEMG 28/07/2015).
[5] Art. 183 - Não se aplica o disposto nos dois artigos anteriores: I - se o crime é de roubo ou de extorsão, ou, em geral, quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa;(...) III – se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. (Incluído pela Lei nº 10.741, de 2003).
Mário Luiz Delgado é advogado, professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito (EPD), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso Brasileiro (IDCLB).
Revista Consultor Jurídico, 28 de outubro de 2018, 8h00
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