A já famosa desconsideração da personalidade jurídica é, na verdade, um instituto recente, criado pela jurisprudência, portanto, não tem previsão legal específica sobre seu momento processual de aplicação. Por isso, seu procedimento é objeto de muitas discussões.
Nosso CPC é datado de 1973, todavia, a primeira vez que o ordenamento jurídico brasileiro mencionou a desconsideração foi em 1990, no Código de Defesa do Consumidor (art. 28, §5º). É evidente a desatualização do nosso código processual, o que, dentre outros motivos, ocasionou a elaboração do Anteprojeto do novo Código de Processo Civil, o qual criou capítulo especial para tratar do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o que, a priori, já põe termo a um dos grandes debates referentes a este assunto: a desconsideração é um incidente ou uma ação autônoma?
O Anteprojeto do novo CPC foi apresentado ao Senado em junho de 2010. Em seu capítulo II, do titulo IV tratou do incidente da desconsideração da personalidade jurídica. Ao longo do tempo foram apresentadas emendas pelos senadores, sugestões populares de professores, tribunais, análise de projetos de lei em trâmite e opiniões de outras instituições de direito. Em 15 de dezembro de 2010 nasceu o seguinte texto:
Art. 77 Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado na forma da lei, o juiz pode, em qualquer processo ou procedimento, decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa jurídica ou aos bens de empresa do mesmo grupo econômico.
Parágrafo único. O incidente da desconsideração da personalidade jurídica:
I – pode ser suscitado nos casos de abuso de direito por parte do sócio;
II – é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e também na execução fundada em título executivo extrajudicial.
Art. 78. Requerida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica serão citados para, no prazo comum de quinze dias, se manifestar e requerer as provas cabíveis.
Art. 79. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória impugnável por agravo de instrumento.
O caput do primeiro dispositivo sobre a matéria foi alterado em sua parte final quando encaminhado à Câmara dos Deputados. Previa os requisitos para que fosse decretada a desconsideração: (i) abuso da personalidade jurídica; (ii) requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo; e (iii) extensão dos efeitos de certas e determinadas coisas aos bens dos administradores ou sócios. Com a emenda, acrescentou-se a extensão da responsabilidade aos bens de empresa do mesmo grupo econômico.
Além disso, criou-se o parágrafo único, que se subdivide em dois incisos, tratando o primeiro dos casos de abuso por parte do sócio, o que caracteriza a desconsideração inversa (quando o sócio abusa da sociedade, para usá-la indevidamente com o fito de camuflar o seu patrimônio pessoal).
O segundo inciso do art. 77 prevê o cabimento da desconsideração a qualquer tempo, o que enfatiza sua característica incidental. No entanto, necessário fazer uma ressalva, tendo em vista que não foram colacionadas no dispositivo as medidas cautelares, o que afasta a incidência da desconsideração em momento anterior ao início do curso do processo.
Em breve comparação ao art. 50 , do CC, o novo CPC praticamente o transcreve, no entanto, apesar de o desvio de finalidade e a confusão patrimonial serem gêneros da espécie abuso de poder, não estão previstos de forma explícita no novo dispositivo. Assim, pode-se dizer que há uma restrição à aplicação da desconsideração, que também pode ser proveniente, por exemplo, da fraude .
Para José Maria Tesheiner, a fraude é um dos modelos processuais básicos para se decretar a desconsideração. Entretanto, o novo CPC o simplificou, passando a exigir ação, incidental, com intimação para exercício do devido processo legal em quinze dias.
A fim de regulamentar esse procedimento, foi redigido o art. 78 , que registra a possibilidade de primeiro o juiz proferir decisão que desconsidere a personalidade, para depois abrir prazo para as partes exercerem o contraditório e a ampla defesa.
O art. 78 traz mudança, no que se refere aos termos “intimação” e “citação” . Antes, estava previsto que o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica seriam intimados da decisão que desconsiderou a personalidade. Na nova redação, as três figuras jurídicas devem ser citadas, o que confere ao incidente um maior rigor, portanto, formalidade.
Cabe aqui uma crítica. A intimação visa à proteção dos princípios da celeridade e da efetividade. A citação requer um desgaste maior, sendo na maioria das vezes morosa e, portanto, um óbice aos princípios aludidos. Os novos preceitos que orientam o trâmite processual têm deixado de lado as formalidades, garantindo a efetividade. A utilização da citação como meio de informação da decisão de desconsideração implica na demora da prestação da tutela jurisdicional pretendida pelo credor, qual seja, a satisfação de seu crédito, podendo ensejar prestígio à fraude apurada.
Relevante ainda constatar que o novo CPC aplica a desconsideração de forma incidental, o que afasta a necessidade de citação, sendo esta exclusiva da ação incidental. Com isso, surge a seguinte questão: é possível um incidente com figuras que não são partes no processo principal? Ou seja, há a possibilidade de se ter um incidente baseado em uma nova relação jurídica, mas com procedimento no processo principal?
Considerando que não há motivos para que a desconsideração seja apreciada em ação autônoma e tendo em vista que a sociedade cuja personalidade é superada não tem seus bens atingidos, não sendo, portanto parte legitima no incidente processual ora estudado, é possível que haja um incidente com uma nova relação jurídica, não no que se refere ao objeto principal, masno tocante às partes envolvidas.
O art. 79 adota a previsão do art. 50, do CC, ou seja, a desconsideração da personalidade jurídica deverá ser declarada incidentalmente no processo de conhecimento, viabilizando o alcance patrimonial dos sócios. Assim, com o objetivo de defender seus próprios interesses, os sócios poderão fazer uso do Agravo de Instrumento, para impugnar a decisão que afetou o seu patrimônio, atendendo às garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
Apesar das inovações, a matéria ainda está longe de se positivar de forma integral. Apenas a título de curiosidade traz-se o Projeto de Lei 2.426/2003, que visa regulamentar o art. 50, do CC. Apresentado em 5 de novembro de 2003, pelo deputado Ricardo Fiúza, sua justificação se deu da seguinte forma:
Embora só recentemente tenha sido introduzido na legislação brasileira, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica vem sendo utilizado com um certo açodamento e desconhecimento das verdadeiras razões que autorizam um magistrado a declarar a desconsideração da personalidade jurídica.
(...)
Vanessa Alves da Cunha é integrante do Antonelli & Associados.
Revista Consultor Jurídico
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