A multa processual, também conhecida como astreinte[1],
tem a finalidade de incentivar o cumprimento de decisão judicial que
estabelece obrigação de fazer ou não fazer. Está prevista nos artigos
461, §§ 4º., 5º. e 6º.[2], e 461-A, § 3º., do CPC[3] e, por meio dela, o Juiz procura coagir o obrigado a cumprir a determinação judicial[4].
Não se confunde com as multas indenizatórias, isto é, não busca
recompor um prejuízo causado ao patrimônio do lesado por ato de alguém.
Conforme ensina Candido Dinamarco sobre as atreintes, “elas miram o
futuro, querendo promover a efetividade dos direitos, e não o passado em
que alguém haja cometido alguma infração merecedora de repulsa”.
“Concebidas como meio de promover a efetividade dos direitos, elas são
impostas para pressionar a cumprir, não para substituir o adimplemento.
Consequência óbvia: o pagamento das multas periódicas não extingue a
obrigação descumprida e nem dispensa o obrigado de cumpri-la. As multas
periódicas são, portanto, cumuláveis com a obrigação principal e também o
cumprimento desta não extingue a obrigação pelas multas vencidas”,
completa o doutrinador[5].
O legislador concedeu ao Juiz a prerrogativa não somente de impor multa
diária ao destinatário da ordem para cumprimento da obrigação de fazer
ou não fazer (§ 4º. do art. 461), mas também de alterá-la,
independentemente de pedido da parte interessada, quando se tornar
insuficiente ou excessiva. Tal faculdade está predisposta no § 6º. do
art. 461 do CPC (incluído pela Lei n. 10.444, de 2002), verbis:
“§ 6º O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da
multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva.”
Não há dúvida, portanto, quanto ao poder complementar do magistrado,
para redução ou aumento da multa que se torna insuficiente ou excessiva.
Quer tenha sido fixada na decisão ou sentença de conhecimento (art.
461, §§ 3º. e 4º.), quer no processo de execução (art. 644, caput), o
valor da multa pode ser modificado. A jurisprudência proporcionou a
compreensão exata desse dispositivo (§ 6º. do art. 461), estabelecendo
que essa faculdade do Juiz, de alteração da multa, pode ser exercida a
qualquer tempo, “mesmo depois de transitada em julgado a sentença, não se observando a preclusão”[6]. Isso porque a multa do art. 461, § 6º., “não faz coisa julgada material, podendo ter seu valor alterado pelo Juiz a qualquer tempo, desde que se tenha tornado insuficiente ou excessivo”[7].
Posteriormente, a jurisprudência evoluiu, para exigir também uma
adequação, indicando que deve haver um controle quando o valor da multa
diária, acumulada, atinge quantia exagerada. Se o destinatário da ordem
não a cumpre em tempo oportuno ou retarda o seu cumprimento, causando,
assim, a acumulação diária do valor da dívida
originalmente arbitrada, nem por isso se deve permitir a execução do
valor acumulado sem qualquer limite. A exigência da multa fica adstrita
aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade[8], no sentido de que se deve adequá-la ou torná-la compatível com a obrigação.
Essa exigência de adequação visa a, em primeiro lugar, preservar a
natureza coercitiva da multa e, em um segundo momento, evitar
enriquecimento sem causa da parte beneficiada com a sua imposição. Com
efeito, a multa cominatória (astreinte), enquanto instituto de direito
processual, serve como meio de coerção patrimonial para que o obrigado
faça ou deixe de fazer algo, em virtude do comando judicial. Não tem
caráter compensatório, indenizatório ou sancionatório, limitando-se a
influenciar o cumprimento da ordem judicial. Por isso, deve ser
suficientemente adequada e proporcional à sua finalidade intimidatória,
de modo que não se torne insignificante a ponto de não criar no obrigado
qualquer receio quanto às consequências de seu não acatamento, bem como
não pode, de outro lado, ser desproporcional ou desarrazoada a ponto de
proporcionar ao exequente um enriquecimento sem causa.
O nosso Código Civil veda o enriquecimento sem causa, ao dizer que
“aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será
obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos
valores monetários” (art. 884). Portanto, a multa não pode servir para
dar causa a enriquecimento injusto da parte beneficiada pela decisão
judicial, com o que ficaria com sua natureza desnaturada, tornando-se
mais desejável ao credor do que a satisfação da obrigação principal,
como alertou o Min. Luis Felipe Salomão, ao julgar recurso especial que
resultou com a seguinte ementa:
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REVISIONAL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. EXCLUSÃO DO CADASTRO DE PROTEÇÃO DE CRÉDITO. SUPERVENIÊNCIA DE SENTENÇA JULGANDO IMPROCEDENTE O PEDIDO E REVOGANDO A MEDIDA ANTECIPATÓRIA. MULTA COMINATÓRIA APLICADA PELO JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO APÓS O RECEBIMENTO DA APELAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. NULIDADE.
(...)
A partir do momento que a fixação das astreintes atinge o ponto de ser mais interessante à parte que a própria tutela jurisdicional do direito material em disputa, há uma total inversão da instrumentalidade caracterizadora do processo. Este não pode ser um fim em si mesmo, deve ser encarado por seu viés teleológico, sendo impregnado de funcionalidade. Não é a toa que um dos princípios do direito processual é a efetividade do processo. Quando o juiz fixa multa em caso de descumprimento de determinada obrigação de fazer, o que se tem em mente é que sua imposição sirva como meio coativo para cumprimento das obrigações para que a parte adversa obtenha efetivamente a tutela jurisdicional pretendida, não podendo servir como enriquecimento sem causa” (REsp 661.683-SP).
Ainda no mesmo sentido de que a multa não seja cobrada em valores
exorbitantes, para não permitir a descaracterização de sua
instrumentalidade e o enriquecimento sem causa da parte beneficiada,
advertiu a Mininstra Nancy Andrighi em acórdão assim ementado:
“PROCESSO CIVIL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. ASTREINTES. POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DA MULTA COM BASE NOS CRITÉRIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. PRAZO INICIAL PARA A CONTAGEM DOS JUROS MORATÓRIOS. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO.
- É lícito ao julgador, a qualquer tempo, modificar o valor e a periodicidade da multa (art. 461, parágrafo 4º. c/c parágrafo 6º. do CPC), conforme se mostre insuficiente ou excessiva. Precedentes.
(...)
A finalidade da multa é compelir o devedor ao efetivo cumprimento da obrigação de fazer. Nesse sentido, a multa não pode se tornar mais desejável ao credor do que a satisfação da prestação principal, a ponto de ensejar o enriquecimento sem causa. O processo deve ser um instrumento ético para a efetivação da garantia constitucional de acesso à justiça, sendo vedado às partes utilizá-lo para obter pretensão manifestamente abusiva, a enriquecer indevidamente o postulante” (REsp 1.060.293-RS).
No mesmo sentido:
“PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO. OBRIGAÇÃO DE FAZER. MULTA POR DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO JUDICIAL. EXCESSO. REDUÇÃO.
A multa pelo descumprimento de decisão judicial não pode ensejar o enriquecimento sem causa da parte a quem favorece, como no caso, devendo ser reduzida a patamares razoáveis” (REsp 793491-RN, rel. Min. César Asfor Rocha, 4ª. Turma, DJ de 06.11.06).
Fica evidenciada, portanto, a necessidade de uma relação de proporcionalidade entre o valor da multa e a obrigação principal que se pretende seja cumprida através de sua aplicação. A multa tem caráter acessório, não podendo se tornar mais interessante para o credor do que a prestação do próprio direito material em disputa[9].
Nesse diapasão, também a esse instituto de natureza processual deve ser
observado um princípio básico do Direito: de que “o acessório segue o
principal”, no sentido de que o que é acessório existe em razão e
gravita em torno do bem ou valor principal.
É importante ressaltar que a relação de compatibilidade e adequação
entre a multa e a obrigação principal não somente deve ser observada no
momento de sua fixação. Ao estabelecer o valor da multa diária em
decisão liminar ou na sentença, o Juiz deve arbitrá-la em patamar
“suficiente ou compatível com a obrigação”, diz o parágrafo 4º.
do art. 461 do CPC. Essa relação de compatibilidade deve também ser
perseguida na hipótese de execução do valor acumulado
da multa em determinado período, em caso de inobservância (parcial ou
total) pelo obrigado. Na cobrança da multa acumulada deve ser tomado
como parâmetro ou limite, quando possível, o valor da obrigação
principal ou bem material que se procura preservar. Se a decisão
judicial que fixa originalmente a multa tem por escopo a garantia ou
preservação de um determinado bem jurídico, é indispensável que, na
execução do valor acumulado, se preserve uma relação de
proporcionalidade com esse bem que constitui o objetivo da prestação
jurisdicional.
Essa advertência já vem sendo feita há algum tempo pelo STJ, deixando
claro que, além da possibilidade de se reduzir a multa, quando
exorbitante, deve ser observada uma limitação para a cobrança da multa, um teto máximo para execução do seu valor acumulado, conforme arestos abaixo:
“PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO – ASTREINTES – OBSERVÂNCIA DA RAZOABILIDADE.
A multa imposta pelo Juízo, com vencimento diário, para prevenir descumprimento de determinação judicial (astreintes), deve ser reduzida, se verificada discrepância injustificável entre o patamar estabelecido e o montante da obrigação principal. Agravo regimental improvido” (AgRg no Ag 896430-RS, rel. Min. Sidnei Beneti, j. 23.09.08).
“CIVIL E PROCESSUAL. (...). MULTA DIÁRIA. CUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL. CABIMENTO. EXCESSO. REDUÇÃO E LIMITAÇÃO.
(...)
III. Dado às peculiaridades da espécie, possível a imposição de penalidade para que a ré cautelar efetue o depósito judicial da importância garantida por fiança, desde que fixada em valor razoável e limitada ao montante da obrigação em discussão, podado o excesso aqui identificado.
IV. Recurso especial parcialmente conhecido e provido em parte, extinta a Medida Cautelar n. 5.406/PR, por superveniente perda do seu objeto.” (STJ-4ª. Turma, REsp 685.984/PR, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. em 06/04/2010, DJe 26/08/2010).
“AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. ASTREINTES . FIXAÇÃO EM VALOR ELEVADO. REDUÇÃO. POSSIBILIDADE. LIMITAÇÃO AO VALOR DA OBRIGAÇÃO PRINCIPAL. SÚMULA 83 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO A DISPOSITIVOS LEGAIS EM SEDE DE AGRAVO
1. É possível a redução das astreintes fixadas fora dos parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade, fixada a sua limitação ao valor do bem da obrigação principal, evitando-se o enriquecimento sem causa" (REsp 947.466/PR, DJ de 13.10.2009). Incidência da súmula 83 do Superior Tribunal de Justiça.
(...)
3. Agravo regimental desprovido.” (STJ-4ª. Turma, AgRg no REsp 541.105/PR, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. em 4/2/2010, DJe 08/03/2010).
“CIVIL E PROCESSUAL. AUTOMÓVEL. DEFEITO DE FABRICAÇÃO. SUBSTITUIÇÃO. EXECUÇÃO DE ASTREINTES . PENALIDADE ELEVADA. REDUÇÃO. POSSIBILIDADE. LIMITAÇÃO AO VALOR DO BEM PERSEGUIDO NA AÇÃO DE CONHECIMENTO.
I. É possível a redução das astreintes fixadas fora dos parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade, fixada a sua limitação ao valor do bem da obrigação principal, evitando-se o enriquecimento sem causa.
II. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, provido.
(STJ-4ª. Turma, REsp 947.466-PR, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. em 17/9/2009, DJe 13/10/2009)
Mais recentemente, o Ministro Luis Felipe Salomão proferiu decisão
terminativa no REsp 1.284.683-BA, deixando assente que a execução da
multa cominatória deve observar como teto máximo o valor da obrigação principal, ao dizer o seguinte:
“Esta Corte entende que, em regra, tanto para se atender ao princípio da proporcionalidade quanto para se evitar o enriquecimento ilícito, o teto do valor fixado a título de astreintes não deve ultrapassar o valor do bem da obrigação principal”.
A decisão mencionada portou a seguinte ementa:
“RESPONSABILIDADE CIVIL. INSCRIÇÃO INDEVIDA EM CADASTROS RESTRITIVOS DE CRÉDITO. DANOS MORAIS. VALOR DA CONDENAÇÃO. REDUÇÃO. CORREÇÃO MONETÁRIA. SUMULA 362/STJ. JUROS DE MORA. SÚMULA 54/STJ. APLICAÇÃO DA MULTA DO ART. 461, § 4º, DO CPC. VALOR TOTAL. LIMITAÇÃO. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.
(...)
3. Em princípio, o valor das astreintes não pode ser revisto em sede de recurso especial, em face do óbice da Súmula 7/STJ. Contudo, em situações excepcionais, nas quais o exagero na fixação configura desrespeito aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a jurisprudência deste Tribunal afasta a vedação da Súmula 7/STJ para reduzir e adequar a multa diária.
4. No caso, o valor da multa, por si só, não se mostra elevado, ante a capacidade de solvência do agravado, sendo, ao mesmo tempo, o suficiente a compeli-lo a manter-se obediente à ordem judicial.
5. Todavia, cabe fixar um teto máximo para a cobrança da multa, pois o total devido a esse título não deve distanciar-se do valor da obrigação principal.
Precedentes.
6. Recurso especial conhecido e parcialmente provido” (decisão publicada no DJe em 04.09.12).
Em conclusão, deve ser dito que na execução da multa (astreinte),
quando acumulada em razão do descumprimento (total ou parcial) do
obrigado, o Juiz pode observar como limite o valor da
obrigação principal, quando esta puder ser estimada em termos monetários
e, em não sendo isso possível, pode se ater ao valor da causa no
processo de conhecimento ou a qualquer outro critério que torne
compatível a cobrança com o direito material disputado. Se a decisão
judicial que fixa originalmente a multa tem por escopo a garantia ou
preservação de um determinado bem jurídico, é indispensável que se
guarde uma relação de proporcionalidade com esse bem que constitui o
objetivo da prestação jurisdicional. O que importa é que o magistrado se
atenha a padrões de proporcionalidade e razoabilidade,
para não permitir que o instituto da multa coercitiva (astreintes) perca
seu caráter instrumental e se transforme em fonte de enriquecimento
ilícito.
É importante deixar claro que a limitação do valor da multa, quando
exigida diante do descumprimento de ordem judicial, não deve ser tomada
como princípio absoluto, mas depender do exame das circunstâncias do
caso concreto. Se o único obstáculo ao cumprimento da decisão judicial é
a resistência ou descaso da parte condenada, que age com completa
ausência de boa-fé e de forma maliciosa, o valor acumulado da multa não
deve ser reduzido ou limitado. A limitação ou adequação do valor da
multa acumulada deve ser reconhecida somente como uma potencialidade do
sistema ou faculdade do julgador[10], sob pena
de destituí-la de sua função intimidatória. Em situações de resistência
injustificável, limitar a cobrança da astreinte “sinalizaria às partes
que as multas fixadas não são sérias, mas apenas figuras que não
necessariamente se tornam realidades”, adverte a Ministra Nancy
Andrighi. A procrastinação sempre poderia acontecer “sob a crença de
que, caso o valor da multa se torne elevado, o inadimplente a poderá
reduzir no futuro, contando com a complacência do Poder Judiciário”[11].
REINALDO FILHO, Demócrito. Existe um limite máximo para execução das astreintes? A evolução da jurisprudência do STJ quanto à matéria. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3466, 27 dez. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23312>. Acesso em: 30 dez. 2012.
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