domingo, 30 de dezembro de 2012

A impenhorabilidade do bem de família dado em hipoteca

A priori, é de se salientar que, como é sabido, existem dois tipos de bem de família: o bem de família voluntário e o bem de família legal.
O primeiro, disciplinado pelo Código Civil nos seus artigos 1.711 a 1.722, depende de ato de vontade do proprietário interessado para sua instituição, que será realizada mediante escritura pública devidamente registrada, ao passo que, o segundo, disciplinado pela Lei 8.009/90, independe de manifestação de vontade do beneficiário para sua caracterização como bem de família, ocorrendo de forma involuntária.
Isto posto chega o momento da indagação: caso o bem de família legal seja oferecido em hipoteca, por seu titular, deixa de existir a proteção legal e o bem torna-se penhorável?
Em que pese a existência de respeitáveis opiniões em contrário, acreditamos que não.
Os que defendem a penhorabilidade do bem de família argumentam que o bem não é retirado da esfera de indisponibilidade de seu proprietário, e que, se o bem pode ser alienado por ele livremente, pode ser dado em hipoteca, o que implicaria na renúncia à impenhorabilidade.
Há de se ter em mente, porém, que o bem de família legal, instituto incorporado ao direito pátrio pela Lei 8.009/90, busca proteger prioritariamente não a propriedade em si, mas sim o direito fundamental da pessoa humana à moradia. Ao tornar este bem impenhorável a Lei estabelece um princípio de ordem pública, que visa garantir a preservação do direito à moradia em detrimento da garantia patrimonial que estes mesmos bens oferecem aos credores. Uma vez que mencionada Lei não busca resguardar o devedor, mas sim sua família, assegurando-lhe uma vida digna, em conformidade com o que reza a Constituição Federal, a garantia legal não pode ser afastada, sendo irrenunciável.
Ademais, de acordo com o a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
“A proteção legal conferida ao bem de família pela Lei 8009/90, não pode ser afastada por renúncia do devedor ao privilégio, pois é princípio de ordem pública e prevalece sobre a vontade manifestada. Incidência da Súmula n. 168/STJ” (AgRg nos EREsp 888654/ES – AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL 2007/0212009-6; Ac. 2ª Seção; Rel. Min. João Otávio de Noronha; inDJe 18.3.2011).
“O bem de família, tal como estabelecido em nosso sistema pela Lei 8.009/90, surgiu em razão da necessidade de aumento da proteção legal aos devedores, em momento de grande atribulação econômica decorrente do malogro de sucessivos planos governamentais. A norma é de ordem pública, de cunho eminentemente social, e tem por escopo resguardar o direito à residência aodevedor e sua família, assegurando-lhes condições dignas de moradia, indispensáveis à manutenção e à sobrevivência da célula familiar.” (REsp 715259/SP RECURSO ESPECIAL 2005/0000624-9; Ac. 4ª Turma; Rel. Min. Luis Felipe Salomão; in DJe 9.9.2010).
Insista que o devedor, quando da tomada de crédito que exige a oferta de sua moradia, de seu bem de família em garantia, não encontrar-se-á em momento de manifestação totalmente livre de vontade. Do contrário, estará ele constrangido à oferta do bem de família em hipoteca, o fazendo porque já não dispõe de outro patrimônio, e necessita, urgentemente, de dinheiro.
Ora, a moradia vem sendo reiteradamente resguardada no nosso ordenamento jurídico, e é justamente esta inviolabilidade do lar que constitui a primordial característica do bem de família, fazendo com que a penhora, mesmo quando dado o bem em garantia hipotecária, ofenda o disposto na Lei Federal 8.009/90.
O direito à moradia é considerado como uma categoria de Direito Fundamental Social, elevado a este patamar pela Constituição da República de 1988, sendo considerado uma diretriz para o Estado, que deve protegê-lo eimplementá-lo. A habitação configura uma das necessidades mais básicas do ser humano e a entidade familiar um dos pilares da sociedade.
Ademais, sabemos que o direito à vida, disposto no art. 5º caput da Constituição Federal, implica no direito a uma vida digna, e, logo, o direito à moradia. Este vem consagrado no art. 6º da Constituição, devendo ser interpretado juntamente com os demais fundamentos da República, presentes no art. 1º, III.
Ora, tendo a Constituição Federal adotado o principio fundamental da dignidade da pessoa humana como pilar de todo o ordenamento jurídico brasileiro, não somente a legislação infraconstitucional, mas também as decisões decorrentes da aplicação do direito material aos casos concretos, deve amoldar-se e delimitar-se aos perímetros impostos por mencionado princípio.
A Lei 8.009/90 não busca proteger somente o bem de família, mas realizar a dignidade da pessoa humana, dando plena e ampla eficácia aos princípios constitucionais acima citados. Essa proteção éestendida à família, cumprindo exatamente o imperativo constitucional, fazendo cair por terra todo e qualquer argumento contra a impossibilidade de constrição do bem de família.
 E é ratificando o todo acima exposto que citamos o seguinte julgado, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em que os grifos são nossos:
Processo: 2004.018881-1 (Acórdão)
Relator: Lédio Rosa de Andrade
Origem: Trombudo Central
Órgão Julgador: Quarta Câmara de Direito Comercial
Julgado em: 04/08/2009
Juiz Prolator: Adriana Lisboa
Classe: Apelação Cível
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS DE TERCEIROS. IMÓVEL PENHORADO EM AUTOS DE EXECUÇÃO DE CÉDULA DE CRÉDITO RURAL HIPOTECÁRIO. IMPENHORABILIDADE DE BEM DE FAMÍLIA MESMO DADO EM HIPOTECA. PROTEÇÃO À DIGNIDADE DO SER HUMANO SUPERIOR AO DIREITO DE PROPRIEDADE. RECURSO IMPROVIDO. Afronta os objetivos elencados no art. 3º da Constituição Federal retirar o único bem imóvel de uma família de agricultores para saldar dívida de instituição financeira.
Vale ressaltar, também, o recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, em que os grifos são nossos:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.035.636 – PR (2008/0045445-9)
Relator: Ministro Aldir Passarinho Junior
Recorrente: Jose Chotguis e outro
Advogado: Didio Mauro Marchesini
Recorrido: Banco do Brasil S/A
Advogados: Carlos Jose Marcieri
 Nelson Buganza Junior
Luciele Corrêa Lima Romano e outro(s)
Ementa: CIVIL E PROCESSUAL. PENHORA. BEM DE FAMÍLIA. ALEGAÇÃO. PRECLUSÃO. INEXISTÊNCIA. IMÓVEL DOS SÓCIOS DADO EM GARANTIA DE DÍVIDA CONSTITUÍDA POR EMPRESA. ART. 3º, V, DA LEI 8009/90. EXEGESE. PRECEDENTES.
I. Nos termos da jurisprudência do STJ, não há que se falar em preclusão da invocação de bem de família se realizada antes mesmo das praças designadas para a alienação do bem. Precedentes.
II. A exceção à impenhorabilidade prevista no art. 3º, inciso V, da Lei n. 8009/90, não se aplica à hipótese em que a hipoteca foi dada para garantia de empréstimo contraído pela empresa, da qual é sócio o titular do bem. Precedentes.
III. Atribuição, contudo, aos executados, das despesas e custas já realizadas atinentes à praça, excluída a comissão.
IV. Recurso especial provido para afastar a constrição.
Diante do exposto, resta demonstrado que o reconhecimento da impenhorabilidade do bem de família, ainda que ofertado em garantia, é, não só o caminho mais justo, mas também dever incontestável de todo jurista, ante o escopo da Constituição da república de 1988 e da proteção especial garantida à família, base da sociedade, pelo Estado. 

FERREIRA, Rodrigo Emiliano; NAVA, Roberta Lima. A impenhorabilidade do bem de família dado em hipoteca. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3467, 28 dez. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23338>. Acesso em: 30 dez. 2012.

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