quarta-feira, 24 de abril de 2013

Evolução histórica: a guarda e o poder familiar até a constituição federal de 1988

A origem da regulamentação jurídica do poder familiar funda-se no direito romano, que, contudo, concebia este poder como uma autoridade completamente diversa da que é exercida atualmente pelos pais em relação a seus filhos. Em primeiro lugar, a própria denominação desta autoridade parental era diferente: chamava-se pátrio poder, e estava concentrado na figura de um paterfamilias.
Em Roma reconhecia-se que o indivíduo do sexo masculino poderia tornar-se chefe de família, ou paterfamilias, sendo o ancestral mais antigo de todo um núcleo familiar extenso. A família romana, de fato, excedia os limites do núcleo formado pelos pais e seus filhos:
“Em nossos dias, em sentido estrito, família é a unidade formada pelo casal e filhos. Cada filho que se casa constitui nova família, da qual se torna chefe, de tal modo que os netos não estão subordinados ao avô, mas ao pai. Em Roma, ao contrário, família é o complexo de pessoas colocadas sob a patria potestas de um chefe - o paterfamilias. A patria potestas não se extingue pelo casamento dos filhos que, tendo a idade que tiverem, sejam casados ou não, continuam a pertencer à família do chefe. Daí, o grande número de membros da família romana (CRETELLA JR, 2000, p. 77).”
Percebe-se que a patria potestas não se restringia ao exercício da função paterna, porque também abarcava o poder de comando de um extenso clã formado por pessoas que compartilhavam com o paterfamílias não apenas laços sanguíneos. Além da abrangência deste poder, salta aos olhos de todo o estudioso do direito a sua intensidade, tendo em vista a peculiar prerrogativa de decisão sobre a vida e a morte dos filhos, o denominado ius vitae ac necis.
“O paterfamilias poderia dispor da vida dos filhos, vende-los, abandoná-los e puni-los. Quanto à esposa, o paterfamílias exercia o manus, ou potestas maritalis, que era análogo ao pátria potestas, não permitindo à mulher nenhum poder sobre seus filhos, vez que, estaria sob a tutela de seus filhos homens quando da morte do marido (QUINTAS, 2010, p.10).”
No direito romano, portanto, conclui-se que havia a outorga de poderes absolutos a um único indivíduo e que este não poderia ser do sexo feminino, caracterizando assim o embrião de um modelo de família patriarcal e hierarquizado (DIAS, 2010).
Inspiradas neste ordenamento jurídico da antiguidade é que surge, no Brasil colônia, a primeira legislação tratando do pátrio poder: ordenações, leis e decretos promulgados em Portugal, legitimadores da exclusividade do homem em possuir a pátria potestade. Mas haviam deveres expressamente previstos que o pai deveria cumprir, por exemplo: educar os filhos de acordo com suas posses e condições; nomear-lhes tutor testamentário; defendê-los em juízo ou fora dele e reclamá-los de quem ilegitimamente os detenha (COMEL, 2003). 
 Frise-se que tais incumbências somente recaiam sobre os filhos legítimos, excluindo-se aqueles classificados como incestuosos, espúrios ou adulterinos, já que a legislação brasileira ainda distinguia a prole conforme se originasse de relações dentro do casamento ou não (DIAS, 2010). O único modelo de família que merecia tratamento do legislador era aquela formada por homem, mulher e filhos, oriunda do matrimônio religioso católico.
De regra a mulher não chegava a exercer a pátria potestade propriamente dita; quando muito apenas se reconhecia que os filhos lhe deviam respeito e obediência. Caso fosse viúva, pela ausência do marido é que deveria ocupar o lugar deste último, mas só continuaria nesta posição até que se casasse novamente, quando perderia o poder familiar sobre os filhos do primeiro leito (COMEL, 2003).
O Código Civil de 1916 repetiu a ideia de que o papel de chefe da família cabia ao homem, sendo que a mulher ganhava ainda posição secundária, conforme o art. 380: “Durante o casamento, exerce o pátrio poder o marido, como chefe de família (art. 233), e, na falta ou impedimento seu, sua mulher.” Até então o ordenamento jurídico brasileiro, por consagrar a supremacia dos interesses do pai, obviamente não concebia a autoridade parental como um conjunto pura e simplesmente de deveres. Ressalta Silvio Baptista (2000) que os doutrinadores da época conceituavam o pátrio poder como o conjunto de direitos subjetivos do chefe de família. As obrigações que lhe cabiam frente aos filhos (como o dever de sustento e educação) na verdade decorriam de imperativos de ordem moral, subprodutos da sua própria autoridade naturalmente emanada da figura paterna.
Como a questão da guarda está relacionada ao poder de direção exercido sobre os filhos menores, à época as regras que definiam o exercício da guarda levavam em conta o direito do pai, ou o direito da mãe, não havendo preponderância dos interesses da prole. Prova disto eram as disposições do Código que cuidavam do assunto.  Se o fim do matrimônio ocorresse por “culpa” da mãe, por exemplo, caberia ao pai obter a guarda. A discussão acerca da quebra dos deveres conjugais era decisiva para o estabelecimento da nova dinâmica familiar pós-separação. E caso a mãe obtivesse a guarda os filhos do sexo masculino só ficariam com ela até os seis anos de idade, restando-lhe a guarda das filhas (QUINTAS, 2010).
O Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/62) não chegou a alterar substancialmente o Código de 1916, pois manteve a prevalência masculina no exercício do pátrio poder, embora de início se tenha a impressão de que houve a primeira tentativa em atribuir também à mulher parcela idêntica do referido poder (DIAS, 2010), conforme a nova redação dada ao art. 380:
“Durante o casamento, compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores, passará o outro a exercê-lo com exclusividade. Parágrafo único. Divergindo os progenitores quanto ao exercício do pátrio poder, prevalecerá a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao juiz para a solução da divergência (grifo nosso).”
Até este ponto nenhuma modificação radical foi percebida, exceto em relação à viúva que contraía novas núpcias. O art. 393 passaria a dispor que ela não perderia mais os direitos decorrentes do pátrio poder sobre os filhos do matrimônio anterior (COMEL, 2003). Embora não tenha sido suficiente para revolucionar o panorama jurídico referente ao exercício da patria potestas, percebe-se que nesta época o legislador já entrava em contato com ideais atenuantes da rígida noção hierarquizada e patriarcal de família, que até então vinha sendo consagrada de modo absoluto nas leis civis.
Em 1.977 a Lei do Divórcio trouxe verdadeiras inovações no tocante à guarda de filhos. Extinguiu-se a antiga regra que determinava limite de idade para que os filhos permanecessem sob a guarda da mãe e foi ainda mais explícito do que o Código de 1916 na situação em que se verificasse a inépcia de ambos os pais para serem guardiões. A nova lei estabelecia expressamente que o juiz, convencido da falta de condições propícias ao exercício da guarda por parte dos pais, poderia colocar os filhos do ex-casal sob a guarda de outro familiar levando-se em conta do grau de parentesco e proximidade (BAPTISTA, 2000).
Ressalte-se que, até então o ordenamento brasileiro não alterou a regra de que caberia o estabelecimento de comum acordo acerca da guarda sempre que a separação fosse consensual.
 Também se deve atentar para outra modificação trazida pela Lei do Divórcio: a fundamentação da sentença não deveria mais restringir-se ao conjunto de mandamentos estáticos que regiam a guarda; o juiz estaria autorizado a levar em consideração o interesse dos filhos, conforme se infere da expressão contida no final do § 1º do art. 10: “Se pela separação judicial forem responsáveis ambos os cônjuges, os filhos menores ficarão em poder da mãe, salvo se o juiz verificar que de tal solução possa advir prejuízo de ordem moral para eles.” Expressamente esta prerrogativa do magistrado surge mais adiante, no art. 13: “Se houver motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular por maneira diferente da estabelecida nos artigos anteriores a situação deles com os pais.” (BAPTISTA, 2000).
Pela primeira vez a lei delimitou as obrigações do ex-cônjuge que não dispunha da guarda, regulando que a este (genitor visitante) caberiam as atribuições de fiscalizar a manutenção e educação dadas aos filhos pelo guardião, bem como estabeleceu a expressão “direito de visitas”, correspondente à prerrogativa que o genitor visitante possuiria de manter contato com a prole conforme acordado judicialmente (DIAS, 2010).
Outras disposições de cunho menos inovador também trazia a lei: quando houvesse separação de fato, a guarda caberia preferencialmente ao cônjuge com quem os filhos já estavam à época da ruptura matrimonial. Quando a separação fosse motivada por doença mental de um dos consortes, o magistrado conferia o dever de assumir a guarda e a educação dos filhos ao cônjuge que tivesse melhores condições. Em qualquer hipótese, sempre que o juiz verificasse a existência de sérios motivos para não deferir a guarda a nenhum dos pais, poderia o filho ficar sob a responsabilidade de pessoa idônea da família.
Até aqui, de maneira significativa o modo de exercício do pátrio poder não se modificou, devido à tradicional concepção de família que ainda se achava arraigada na mentalidade do brasileiro, devido à enorme influência do direito romano na elaboração das primeiras leis e nos costumes vigentes no Brasil: um homem e uma mulher, que através do casamento se uniam e procriavam. Sobre a regência da vida conjugal e dos filhos, prevaleceria a vontade final do marido, por força do modelo patriarcal que a lei expressamente não chegava a vedar.
Apesar disto, em outro aspecto do pátrio poder já se observa o início de uma sensível e gradativa modificação: aos direitos inerentes à patria potestas se contrapunham deveres, pois o exercício do pátrio poder não se resumia à autoridade, à voz de mando; também passava a compreender o respeito aos direitos do filho, sobretudo à sua integridade moral e física, conforme se denota na lei do Divórcio, ao permitir que o juiz relativizasse suas normas levando em conta os “interesses do filho”.

CLARINDO, Aniêgela Sampaio. Guarda unilateral e síndrome da alienação parental. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3583, 23 abr. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/24254>. Acesso em: 24 abr. 2013.

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