Dizem que é mais difícil
explicar o óbvio. Sempre me recordo disso quando um aspecto crucial da
alienação fiduciária de imóveis é colocado em discussão. O objetivo
deste artigo é exatamente enfrentar a dura missão de explicar o óbvio.
Espero que a explicação ajude a afastar um fantasma desnecessário que
foi criado no mercado.
A questão refere-se à cobrança do saldo
devedor de uma determinada dívida garantida por alienação fiduciária de
imóvel quando, após o inadimplemento do devedor, o imóvel é levado a
dois leilões sem que apareçam interessados em comprá-lo. Nesse caso, a
solução dada pela Lei 9.514/97 é a permanência do imóvel na propriedade
do credor.
Até aqui nenhuma questão. Se ninguém aparece para
comprar o imóvel, o jeito é deixá-lo na propriedade do credor.
Paralelamente, a lei estipula que o credor não precisará devolver “o que
sobejar” ao devedor, ficando a dívida extinta.
Quando a lei
menciona que o credor não tem a obrigação de devolver “o que sobejar”,
ficando a dívida extinta, é óbvio que está se referindo à hipótese de a
dívida ser menor e não maior do que o valor de avaliação do imóvel.
Por
exemplo, se a dívida não paga é de R$ 80 mil e o imóvel foi avaliado em
R$ 90 mil, mas ninguém quis comprá-lo nos leilões, o credor ficará com a
propriedade do imóvel, a dívida de R$ 80 mil será considerada extinta e
o credor não precisará devolver “o que sobejar”, ou seja, R$ 10 mil, ao
devedor. Afinal, os R$ 10 mil são teóricos, pois ninguém quis comprar o
imóvel nos leilões.
A solução acima, dada pela Lei 9.514/97, por
óbvio não se refere à hipótese de a dívida ser maior do que a avaliação
do imóvel. Por exemplo, se a dívida não paga é de R$ 2 milhões e o
imóvel foi avaliado em R$ 90 mil, o credor ficará com a propriedade do
imóvel se não houver interessados nos leilões. Mas não será aplicável a
regra de que o credor fica desobrigado de devolver “o que sobejar”,
ficando extinta a dívida. Afinal, não existe nenhum valor que sobejou
após a permanência do imóvel com o credor. Muito pelo contrário, a
dívida continua existindo pelo valor de R$ 1,910 milhão, já que o valor
de R$ 90 mil do imóvel deve ser abatido do valor total da dívida de R$ 2
milhões.
Naturalmente, assim como em qualquer outra modalidade de
garantia, após a excussão da alienação fiduciária que não foi
suficiente para a liquidação integral do crédito, a dívida remanescente
continua existindo e o credor pode continuar sua cobrança normalmente.
Dizer
que a dívida ficaria extinta, além de não fazer sentido, representaria
evidente enriquecimento sem causa do devedor. É importante repetir que a
Lei 9.514/97 não menciona em nenhum momento que a dívida fica extinta
nessas condições. Aliás, nem poderia fazer isso, pois não poderia trazer
uma hipótese de enriquecimento sem causa.
A Lei 9.514/97 apenas
trata da extinção da dívida no contexto da devolução, pelo credor ao
devedor, “do que sobejar” após os leilões. Esse contexto só existe se:
(i) o imóvel foi vendido em leilão por um valor maior do que a dívida;
ou (ii) não apareceram interessados nos leilões quando o valor de
avaliação do imóvel era maior do que o valor da dívida. Assim, a
situação só é matematicamente possível se o valor da dívida é menor do
que o valor do imóvel.
Infelizmente, alguns autores tratam a
questão de maneira genérica concluindo que a dívida ficaria extinta em
qualquer hipótese, ou seja, ainda que a dívida fosse maior do que o
valor de avaliação do imóvel.
Essa conclusão não se sustenta em
nenhum critério de interpretação. Ela não está baseada na finalidade da
lei, nem na sistemática da lei. Ela não está baseada sequer na
literalidade da lei, como alguns poderiam confundir ao ler
apressadamente a Lei 9.514/97. Mais do que isso, nenhum critério de
interpretação poderia levar ao enriquecimento sem causa do devedor.
Felizmente,
essa interpretação genérica ainda não chegou à jurisprudência. Na
verdade, a esperança é que o judiciário seja mais criterioso e separe as
hipóteses quando for chamado a analisar a questão. Mas a mera
existência de tal interpretação criou uma insegurança enorme no mercado.
Com
receio de ver o seu crédito desaparecer na medida do enriquecimento sem
causa do devedor, vários credores têm medo de utilizar a alienação
fiduciária de imóveis. Assim, acabam optando pela hipoteca, que é uma
garantia menos eficaz. Isso leva os credores a aumentarem as taxas de
juros cobradas e, como resultado, todos os bons devedores são
prejudicados.
A situação acaba sendo um ótimo exemplo de como a
insegurança jurídica afeta a economia. O caso é ainda mais curioso
porque a insegurança jurídica decorre de uma interpretação nada razoável
disseminada quase na forma de um mito.
Ora, não faz sentido que o
mecanismo da alienação fiduciária de imóveis seja distorcido e mal
aproveitado em função de tal interpretação. Esse fantasma precisa ser
dissipado.
Renato Berger é sócio de TozziniFreire Advogados
Revista Consultor Jurídico, 28 de novembro de 2013
http://www.conjur.com.br/2013-nov-28/renato-berger-obvio-extincao-divida-alienacao-fiduciaria
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