sábado, 16 de setembro de 2017

Multiparentalidade: prevalência de interesses meramente patrimoniais? (parte 1)


Resumo: Em razão da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 622, no leading case RE n. 898.060/SC sob repercussão geral, na qual admitiu-se a multiparentalidade, isto é, a possibilidade de coexistência dos vínculos biológico e afetivo, sem que haja hierarquia entre eles, este artigo tem por escopo analisar as possíveis consequências patrimoniais. Isto porque a admissão de filiação biológica e socioafetiva, de forma concomitante, gera encargos decorrentes do poder familiar para ambos os pais, inclusive quanto ao direito aos alimentos e sucessórios, podendo o filho se beneficiar desta dupla proteção. Com isso, surge o questionamento se a decisão do STF não teria aberto espaço para demandas de reconhecimento de paternidade, baseadas em interesses exclusivamente patrimoniais.
Palavras-chave: multiparentalidade; filiação biológica; filiação afetiva; poder familiar; direitos sucessórios; alimentos; paternidade responsável.

1 INTRODUÇÃO

Em setembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) admitiu a multiparentalidade, no Tema 622, sob repercussão geral, cujo leading case é o Recurso Extraordinário n. 898.060/SC, de Relatoria do Ministro Luiz Fux.

Trata-se de decisão paradigmática, pois, ao acolher a possibilidade da coexistência de paternidade socioafetiva com a paternidade biológica, reconhece-se que não há prevalência do vínculo biológico em detrimento do afetivo, admitindo-se, finalmente, a importância do afeto nas relações familiares, alçando-o como valor jurídico.

Ao apreciar o tema, sob repercussão geral, o plenário do STF, por maioria dos votos, aprovou a seguinte tese: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios".[3]

Enfim, admite-se a existência de dois pais, ou duas mães, com todas as consequências jurídicas inerentes a uma paternidade, inclusive a incidência dos direitos sucessórios. Resta, finalmente, esclarecida a discussão doutrinária se eventual vínculo socioafetivo excluiria o genitor biológico de suas responsabilidades decorrentes do poder familiar.

Após a decisão, não demorou muito a surgirem vozes na doutrina alertando sobre as consequências e os reflexos que esta decisão do STF, ousada e necessária, teria nas relações familiares.

Dentre estes alertas, destaca-se, neste artigo, o receio de que a posição do STF possa gerar demandas mercenárias, baseadas em interesse puramente patrimonial, seja quanto ao direito aos alimentos, seja relativo aos direitos sucessórios.

Teria o STF “aberto as portas do Judiciário para filhos que somente se interessam pelos pais biológicos no momento de necessidade ou ao se descobrirem como potenciais herdeiros de fortunas”?[4]

Em que pese se tratar de uma preocupação legítima, o Direito de Família não deve ficar engessado em razão deste receio, conforme se demonstrará a seguir.

2 DAS RAZÕES PARA O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE

Aborda-se, a seguir, alguns dos argumentos jurídicos a fundamentar o necessário e, diga-se de passagem, tardio do reconhecimento da multiparantalidade.

2.1 DOS NOVOS CONTORNOS FAMILIARES E O RECONHECIMENTO DO VALOR AFETO

Com a evolução social, percebe-se a modificação na estrutura familiar brasileira, que passa a ter novos arranjos, à margem da figura clássica e estática do casamento entre homem e mulher.

A partir da Constituição Federal de 1988, o modelo de família matrimonializada e hierarquizada cede espaço à instituição familiar formada pelo vínculo afetivo, não importando a sua estrutura.

Em que pese os avanços trazidos pela Constituição Federal, irradiando os seus efeitos na legislação infraconstitucional, sobretudo com a despatrimonialização do Direito Civil, o legislador não consegue acompanhar as rápidas mudanças sociais.

Ressalta-se que a Carta Magna traz hipóteses meramente exemplificativas de modelos familiares, além da clássica formação pelo casamento, como a união estável (art. 226, §3°) e a família monoparental (art. 226, §4°).

Todavia, a inexistência de regulamentação acerca de todas as possibilidades de arranjos familiares não impede que novas formações, diversas do modelo tradicional, sejam protegidas pelo Direito.

Pelo contrário, conforme observa o Ministro Luiz Fux, “É o direito que deve se curvar às vontades e necessidades das pessoas, não o contrário, assim como um alfaiate, ao deparar-se com uma vestimenta em tamanho inadequado, faz ajustes na roupa, e não no cliente”.[5]

Reconhece-se, enfim, o valor jurídico do afeto, há muito já defendido pela doutrina.

É preciso, portanto, pensar a família sob uma concepção eudemonista. Nas palavras do Ministro Luiz Edson Fachin:
Sob as relações de afeto, de solidariedade e de cooperação, proclama-se, com mais assento, a concepção eudemonista da família: não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade.[6]

Nessa perspectiva, não pode mais haver prevalência do vínculo biológico sobre o afetivo. Não há outra solução senão reconhecer a equivalência e a coexistência de ambos.

2.2 DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A BUSCA DA FELICIDADE

Acerca do tema, invoca-se ainda, a dignidade da pessoa humana, princípio meta-jurídico e fundamento do nosso Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, CF).

Immanuel Kant, na formulação do seu imperativo categórico, conclui que o ser humano deve sempre ser um fim em si mesmo, nunca um meio para um fim.

É, pois, o indivíduo quem deve guiar a sua vida, sendo senhor do seu próprio destino, não podendo ser, em hipótese alguma, objeto das criações legislativas. Não se pode exigir que o indivíduo se encaixe em formulações e institutos pré-concebidos pelo legislador, sob pena de inadmissível objetificação daquele.

Trazendo o postulado para a seara do Direito de Família, “tem-se que a dignidade humana exige a superação de óbices impostos por arranjos legais ao pleno desenvolvimento dos formatos de família construídos pelos próprios indivíduos em suas relações afetivas interpessoais”.[7]

Conclui-se que a dignidade da pessoa humana confere ao indivíduo a possibilidade de que ele escolha o formato de família que bem desejar, de acordo com as suas relações afetivas interpessoais, mesmo que elas não estejam previstas em lei.

O direito à busca da felicidade está estritamente ligado à dignidade da pessoa humana. O direito à busca da felicidade faz com que o indivíduo seja o centro do ordenamento jurídico-político, que deverá reconhecer que aquele possui capacidade de autodeterminação, de autossuficiência e a liberdade de escolher seus próprios objetivos.

Deve-se permitir, portanto, que o indivíduo busque a sua felicidade, de acordo com as suas preferências e concepções, protegendo-o de indevidas ingerências do Estado. É o Estado quem deve se curvar às escolhas do indivíduo e não o contrário.

A busca pela felicidade engloba, inevitavelmente, a família, já que esta é o locus de realização do indivíduo.

Por sua importância, a família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado, conforme dispõe o artigo 226 da Constituição Federal. Ressalta-se que esta proteção deve se dar contra terceiros, mas também contra o próprio Estado, que não deve se imiscuir nas relações afetivas e privadas dos indivíduos.
(...)
MIOLA, Ana Luisa Imoleni; ROSA, Karine Azevedo Egypto. Multiparentalidade: prevalência de interesses meramente patrimoniais?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5189, 15 set. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/59183>. Acesso em: 16 set. 2017.

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