sábado, 16 de setembro de 2017

Multiparentalidade: prevalência de interesses meramente patrimoniais? (parte 2)

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2.3 DA INEXISTÊNCIA DE HIERARQUIA ENTRE A FILIAÇÃO BIOLÓGICA E A AFETIVA

A filiação está elencada como direito da personalidade no art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente: “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça”.

A doutrina conceitua a filiação como a relação de parentesco, em linha reta, no primeiro grau, que vincula uma pessoa àqueles que a geraram, ou a receberam como se a tivessem gerado, baseado no afeto e na solidariedade. Ou seja, filiação é a relação de parentesco que vincula ascencionalmente os filhos aos pais.

Possui a mesma natureza jurídica da paternidade, mudando apenas o enfoque de análise: a filiação é considerada de filho para pai, enquanto a paternidade analisa-se pelo prisma dos pais.

Há, atualmente, três critérios para o estabelecimento da filiação: jurídico, biológico e socioafetivo.

No primeiro, a paternidade é presumida de acordo com o art. 1.597 do Código Civil (pater is est quem nuptiae demonstrat), independente da correspondência ou não com a realidade. No critério biológico, a definição da filiação tornou-se possível graças à popularização do exame de DNA.

Por fim, a filiação socioafetiva ganhou destaque por ser fundada no melhor interesse da criança e na dignidade da pessoa humana. [8]

A Constituição Federal de 1988 motiva a paternidade sociológica no caput do art. 227, quando assegura à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à convivência familiar[9]. No §6º do mesmo artigo, garante a todos os filhos os mesmos direitos, não importando sua origem (regra da igualdade).

Elenca-se, ainda, como fundamento constitucional o princípio da paternidade responsável, vinculado ao melhor interesse da criança (art. 277, §7º, CF); e o princípio da prevalência do elemento anímico affectio nas relações familiares.[10]

Em âmbito infraconstitucional, a filiação socioafetiva confirma-se no Código Civil, quando o art. 1.593 dispõe que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”. Assim, pode-se considerar que essa “outra origem” abrange a afetividade.

Validando todos esses dispositivos está o princípio da dignidade humana, pois ela “protege o homem em sua vivência familiar, ainda que nenhum vínculo de sangue exista em sua constituição”.[11]

A prova fática da paternidade afetiva é a posse do estado de filho, sempre presente quando há uma relação de carinho entre pai e filho. Assim define Vanessa Ribeiro Corrêa Sampaio Souza:
A paternidade afetiva tem, como base fática para o seu estabelecimento, a denominada posse de estado de filho, estando esta materializada sempre que se consiga visualizar a existência de todos os elementos pertinentes a uma concreta e efetiva relação filial, levando-se em consideração o comportamento daqueles que a integram.[12]

Por não haver legislação brasileira que defina tal conceito, ao contrário de países europeus como França e Portugal, a doutrina defende que a posse de estado se configura quando há a presença dos elementos nome, trato e fama.

O nome se caracteriza nos casos em que o filho usa o patronímico do pai, representando a vontade da família de que o mesmo lhe pertença; ou apenas quando há o tratamento de pai e filho entre as partes. Considera-se o nome como o fator menos importante, sendo que a posse do estado de filho pode ser reconhecida com apenas os outros dois elementos.

O trato é a própria relação de cuidado e afeto entre ambos, por isso é considerado o elemento imprescindível. A fama se dá no momento em que os demais familiares e a sociedade conheçam essa relação paternal.

Somado às demais características, o fator temporal também se faz necessário a fim de constatar a manutenção e estabilidade desse relacionamento, possibilitando segurança e bem-estar ao filho.

A posse de estado de filho está presumida no art. 1.605 do Código Civil, o qual autoriza a prova da filiação quando existirem fatos já certos.

Ambicionando reconhecer e proteger o direito à filiação, a Constituição Federal de 1988, no §6º de seu art. 227, estabeleceu a igualdade entre todos os filhos. Abandonou-se a classificação discriminatória do Código Civil de 1916 entre os filhos legítimos e ilegítimos.

O Código Civil reproduziu o §6º do art. 227 da Constituição Federal e determinou que “Os filhos havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

Conforme lição de Maria Berenice Dias:
Não mais se pode dizer que alguém só pode ter um pai e uma mãe. Agora é possível que pessoas tenham vários pais. Identificada a pluriparentalidade, é necessário reconhecer a existência de múltiplos vínculos de filiação. Todos os pais devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar, sendo que o filho desfruta de direitos com relação a todos.[13]

Havendo a possibilidade de diferentes modalidades de filiação e a obrigatória igualdade entre elas, imprescindível também acolher a coexistência entre os diferentes vínculos de filiação, sem hierarquia entre eles.

2.4 DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL

A expressão “paternidade responsável” não se limita às obrigações do homem, compreende também a maternidade responsável. Poderia ser substituída por parentalidade responsável, tradução correta de parental responsibility, termo inglês que serviu de inspiração ao constituinte brasileiro.[14]

A paternidade responsável foi erigida à direito constitucional, com previsão expressa no art. 227 da Constituição Federal. Posteriormente, foi lembrada infraconstitucionalmente no Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 3º e 4º) e no Código Civil, no inciso IV do art. 1.566.

A paternidade responsável, reformulação da responsabilidade civil, consiste na obrigação dos pais de assistir, criar e educar os filhos, provendo suas necessidades materiais básicas, bem como as biopsíquicas. Isto é, os genitores tem o dever de assistir moral, afetiva, intelectual e materialmente sua prole.

Sobre o tema, interessante a observação de Maurício Kenji Yonemoto:
(...) a fim de observar o princípio constitucional da paternidade responsável, há de se considerar que não se deve limitá-la à idéia da procriação ou, simplesmente, à escolha do momento de ter filhos, mas no dever de consciência do futuro pai/homem, mulher ou mesmo o casal, da responsabilidade decorrente desta paternidade, ou seja, nos deveres que pesam sobre o pai em relação a seu filho, quanto à observação dos direitos deste, com o seu cumprimento da melhor forma possível. [15]

No mesmo sentido, observa Guilherme Calmon Nogueira da Gama:
(...) a parentalidade responsável representa a assunção de deveres parentais em decorrência dos resultados do exercício dos direitos reprodutivos- mediante conjunção carnal, ou com recurso a alguma técnica reprodutiva. Em outras palavras: há responsabilidade individual e social das pessoas do homem e da mulher que, no exercício das liberdades inerentes à sexualidade e à procriação, vêm a gerar uma nova vida humana cuja pessoa- a criança- deve ter priorizado o seu bem-estar físico, psíquico e espiritual, com todos os direitos fundamentais reconhecidos em seu favor.[16]

Haveria, portanto, uma afronta ao princípio da paternidade responsável (art. 226, § 7º, da CF/88) caso fosse permitido que o pai biológico ficasse desobrigado de ser reconhecido como tal pelo simples fato do filho já ter um pai socioafetivo.

Todos os pais devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar e o filho deve poder desfrutar de direitos com relação a todos, não só no âmbito do direito das famílias, mas também em sede sucessória.
(...)
MIOLA, Ana Luisa Imoleni; ROSA, Karine Azevedo Egypto. Multiparentalidade: prevalência de interesses meramente patrimoniais?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5189, 15 set. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/59183>. Acesso em: 16 set. 2017.

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