quarta-feira, 13 de maio de 2020

Análise da jurisprudência do STJ sobre epidemias: HIV

HIV - Fonte: STJ
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Em 2019, a Primeira Turma analisou o caso de uma mulher contaminada pelo HIV em 1982, após transfusão de sangue realizada em hospital público. Depois do contágio, ela transmitiu a patologia para o marido e a filha.
No julgamento de primeiro grau, o juiz condenou o estado do Rio de Janeiro a pagar pensão mensal em favor da filha. O magistrado também condenou a União e o estado do Rio a prestar à filha e ao pai toda assistência médica necessária ao tratamento da Aids, incluindo o fornecimento de medicamentos, além de determinar que a União e o estado pagassem valores atrasados de pensão anteriormente concedida à mulher.
Entretanto, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) reformou parcialmente a sentença por entender que, à época da contaminação da mulher, não seria possível exigir que o Rio de Janeiro ou a União fiscalizassem o sangue para detectar a existência do vírus da Aids, tendo em vista que não existiam testes com essa finalidade. O tribunal considerou que a lei federal que obrigou os entes públicos a fiscalizar os bancos de sangue foi editada apenas em 1988 (Lei 7.694), seis anos após o contágio da vítima.
Ainda segundo o TRF2, o poder público não estaria obrigado a reparar objetivamente os problemas gerados por endemias, epidemias e pandemias. Para o tribunal, como a disponibilização do diagnóstico sanguíneo ocorreu em 1985, e a transfusão foi feita em 1982, não haveria omissão imputável ao poder público.

Princípio da prec​​aução

O relator do recurso da família, ministro Napoleão Nunes Maia Filho, destacou que o STJ, em casos análogos, já entendeu pela aplicação da teoria do risco administrativo aliada ao princípio da precaução, os quais, independentemente da existência de certeza sobre o vírus transmissor da doença, obrigam a administração pública a adotar medidas na tentativa de mitigação do dano.
Ao restabelecer a sentença, o ministro citou manifestação do Ministério Público Federal (MPF) no sentido de que, no início da década de 1980, já se sabia que a Aids poderia ser transmitida pelas transfusões de sangue. Assim, segundo o MPF, o desconhecimento a respeito do vírus transmissor não exonerava o poder público de adotar medidas para mitigar os efeitos de uma pandemia ou epidemia (processo sob sigilo).  

Dano p​​revisível

No julgamento do REsp 1.299.900, quando a Segunda Turma entendeu ser responsabilidade da União e do estado do Rio de Janeiro o pagamento de indenização a um paciente pela transmissão de HIV e hepatite C durante tratamento de hemofilia, o ministro Humberto Martins aprofundou o conceito do princípio da precaução no contexto das questões de saúde.
Como explicou o ministro, o princípio da precaução é oriundo do direito ambiental, mas norteia as condutas governamentais também no âmbito administrativo. Proposto formalmente na Conferência Rio-92, o princípio pode ser traduzido como a garantia contra riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, ainda não podem ser identificados. Segundo a ideia da precaução, a ausência da certeza científica formal ou a existência de um risco de dano irreversível requerem a implementação de medidas preventivas.
Humberto Martins lembrou que, já em 1982, foi demonstrado que a Aids era transmitida por transfusões de sangue, deixando, portanto, os hemofílicos vulneráveis à contaminação. Também por esse motivo, o ministro afastou o argumento de que a contaminação pelo HIV configuraria caso fortuito ou de força maior capaz de desconstituir a responsabilidade civil do estado.
"Dessa forma, percebo todos os elementos para a aplicação do princípio da precaução. O risco potencial era aumento da propagação da Aids. Havia conhecimento, na época, de que a doença poderia ser transmitida por transfusão de sangue. Denota-se que o dano era previsível. A ausência de certeza científica acerca do vírus transmissor da doença, portanto, não afastava a obrigação de a administração pública (seja na esfera federal, seja na esfera estadual) adotar as medidas cabíveis para tentar mitigar o dano", finalizou o ministro.

Um comentário:

  1. Excelente artigo sobre o princípio da precaução e a responsabilidade civil do Estado.

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