O direito brasileiro sempre privilegiou a tutela repressiva em função do dogma da incoercibilidade do fazer ou não fazer, relegando-se a proteção inibitória a questões envolvendo posse e propriedade (direitos patrimoniais, portanto), o que é um enorme contrasenso, porém revela a ideologia individualista até outrora impregnada no ordenamento jurídico pátrio.
Sobre o assunto, destacam-se as considerações de Sérgio Cruz Arenhardt relativamente a perspectiva histórica do dogma ou princípio da incoercibilidade das prestações (nemo ad factum praecise cogi potest [14]) e o equívoco em que se toma tal princípio a fim de obstar a plena eficácia da tutela específica:
Evidentemente, esta característica da condenação (sua ausência de coercibilidade direta) constitui reflexo direto da aplicação do princípio, de índole tipicamente liberal-burguesa, segundo o qual nemo ad factum praecise cogi potest. Sobre tal verdadeiro dogma, acentua Chiarloni que "a canonização, na cultura jusnaturalística francesa, do princípio nemo ad factum praecise cogi potest constitui realmente um reflexo do secular processo de dissolução da sociedade feudal e da conseqüente afirmação, mesmo nas relações privadas, dos valores de autonomia, liberdade e igualdade, que serão posteriormente ratificados pela revolução e analiticamente codificados na legislação napoleônica. [...] Ainda, porém, que se possa ter por razoável a justificativa para a existência do princípio como exposta pela doutrina, é de se ver que nem sempre tais valores – cruciais para o ordenamento jurídico – merecerão a prevalência que normalmente se lhes dá. Outrossim, mesmo que se possa ter como normal a idéia de que constranger alguém a prestar um fato sempre resulta em um fato mal prestado, também é preciso considerar que essa conclusão não merece o caráter absoluto com que vem comumente exposto. Se a liberdade e a dignidade do réu são importantes, também são a liberdade e a dignidade do autor da demanda. E quiça esses valores 9do autor) realizem-se precisamente na execução de certo fato por parte do réu, caso em que, certamente, fazer prevalecer sempre o interesse do réu – convertendo a prestação em perdas e danos – será desconsiderar os mesmos valores atribuídos à pessoa humana do "credor". [...] [15]
Paulatinamentefoi sendo possível ultrapassar o dogma da incoercibilidade das prestações (positivas e/ou negativas) e corrigir o erro histórico no que tange ao "apequenamento" da tutela inibitória pelo processo civil clássivo, iniciando-se uma mudança paradigmática, justamente, com a Lei de Ação Popular (Lei nº 4.717/65), nos exatos termos dos dizeres de Sérgio Cruz Arenhardt:
Perante o sistema nacional, o primeiro diploma concebido especificamente para a tutela dos interesses da coletividade foi a Lei 4.717/65 (Lei de Ação Popular), imaginada para a proteção do patrimônio público, pelo cidadão. É bem verdade que leis anteriores previam a legitimidade de associações para a proteção coletiva de interesses de seus membros – como as Leis 1.134/50, ou o primitivo Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 4.215/63) -, inspiradas nas class actions do direito anglo-americano. Entretanto, a Lei da Ação Popular foi a primeira que efetivamente procurou oferecer tutela coletiva a interesses metaindividuais, razão suficiente para ser considerada marco na história nacional das tutelas de massa. [...] [16]
No entanto, à míngua de uma potencialidade capaz de tutelar os direitos metaindividuais pela Lei de Ação Popular - sobretudo diante da pouca utilização da tutela coletiva via ação popular, tal mudança em rumo à consolidação de uma tutela inibitória coletiva deu-se mais fortemente com a introdução, entre nós, do artigo 11 da Lei de Ação Civil Pública – LACP e do artigo 84 do CDC e, sobremodo, com o promulgação da Constituição Cidadã.
Não há dúvida, ademais, que hodiernamente o sistema de tutela coletiva dos direitos é engendrado, essencialmente, pela conjugação dos dispositivos da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor, ex vi do disposto no artigo 21 da LACP, o que é de grande importância para admissão da ação inibitória coletiva dita pura (a qual não pressupõe um ilícito anterior), sobretudo em questões envolvendo a delicada problemática ambiental, nos exatos termos das palavras de Luiz Guilherme Marinoni:
[...] Ora, como há um sistema de tutela coletiva dos direitos, integrado, fundamentalmente, pela Lei de Ação Civil Pública e pelo Código de Defesa do Consumidor – em razão do art. 90 do CDC, que manda aplicar às ações ajuizadas com base nesse Código as normas da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Processo Civil, e do art. 21 da Lei de Ação Civil Pública, que afirma que são aplicáveis às ações nela fundadas as disposições processuais que estão no Código de Defesa do Consumidor -, não há dúvida de que o art. 84 do CDC sustenta a possibilidade da tutela inibitória pura para qualquer direito difuso ou coletivo. A ação inibitória coletiva pura tem sido utilizada com certa freqüência, sendo significativo o seu uso nas ações que, visando à proteção do meio ambiente, impedem, v.g., que uma fábrica que ameaça agredir o meio ambiente inicie as suas atividades. [17]
Em suma, presente algum direito ou interesse metaindividual a ser tutelado (difuso, coletivo ou individual homogêneo - art. 81 do CDC), ameaçado de lesão, viável se afigura o manejo de ação coletiva lato sensu (Ação Civil Pública, Ação Popular, Ação Popular Ambiental, Ação Coletiva stricto sensu, etc) na perspectiva de obter-se a inibição do ilícito, ou seja, a defesa in natura do direito material protegido.
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KERN, Ricardo Alessandro. A tutela inibitória do ilícito: apontamentos doutrinários. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3142, 7 fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21025/a-tutela-inibitoria-do-ilicito-apontamentos-doutrinarios>.
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