Embora integremos uma república instituída em
1889, regimes políticos, que ao longo do tempo a compuseram, a
enxovalharam de tal modo que a sua plenitude só se garantiu,
verdadeiramente, com as Constituições de 1946 e a atual, de 1988. E a
república é importante e fundamental, porque nela a coisa pública, no
seu sentido mais amplo, deve ser respeitada, preservada e protegida, o
que usualmente se faz dividindo a gestão estatal em funções primordiais,
que se interpenetram e se submetem a controles, o que em Direito
Constitucional se convencionou chamar de sistemas de freios e
contrapesos.
No nosso modelo de Estado, que repete tantos outros
consolidados no mundo democrático, idealizado por Montesquieu em 1748,
temos estas funções exercidas pelos Poderes Executivo, Judiciário e
Legislativo. Para uma convivência pacífica e organizada da sociedade, a
subordinação legal dos cidadãos, de forma geral e impessoal, limita-se,
como regra, ao que advém do trabalho do Poder Legislativo e da
interpretação das leis pelo Poder Judiciário. Notadamente quando são
manejados mecanismos constitucionais que, excepcionalmente, admitem que
determinadas decisões produzam efeito assemelhado ao das leis em sentido
estrito, como ocorre com as ações de controle de constitucionalidade.
É
certo que há hipóteses, também excepcionais, nas quais a Constituição
Republicana defere a outros entes públicos a edição de atos com efeitos
gerais e abstratos, exemplificando-se com as Medidas Provisórias. Mas,
insista-se, estas hipóteses são realmente excepcionais, daí porque não
serão aqui levadas em conta.
Com essas considerações iniciais
merece algum comentário a recente Resolução 175 do Conselho Nacional de
Justiça, na qual o referido órgão veda às autoridades competentes – e
aqui só se pode ler os magistrados e delegatários de serviços
extrajudiciais – a recusa de habilitação, celebração de casamento civil
ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo
sexo. A matéria não está legislada nem pacificada pelos Tribunais.
Destaque-se
que nos considerandos do referido ato há menção à ADPF 132/RJ, na qual o
Supremo Tribunal Federal, enfrentando tão somente o conteúdo do artigo
1.723 do Código Civil, decidiu, com efeito vinculante, afastar qualquer
interpretação discriminatória da união estável entre parceiros do mesmo
sexo, removendo o obstáculo da literalidade da norma legal para permitir
a constituição familiar homoafetiva, não tratando de qualquer outra
forma de família que não a decorrente da união estável e não
reconhecendo o casamento homoafetivo de forma automática.
Há,
ainda, na Resolução do CNJ, menção ao Recurso Especial 1.183378/RS, no
qual o Superior Tribunal de Justiça entendeu pelo afastamento do óbice
relativo à diversidade de sexos para determinar o prosseguimento do
processo de habilitação de casamento. Todavia, o Recurso Especial produz
efeito apenas entre as partes que participaram da ação judicial, não
podendo sequer ser utilizado para legitimar ato dotado de generalidade e
abstração. A resolução do CNJ, portanto, disse mais do que o decidido
pelo STF, sendo conveniente apontar que a união estável se caracteriza,
em regra, como uma relação informal, surgida de situação de fato,
independente do elemento volitivo para sua caracterização, enquanto o
casamento é negócio jurídico solene, dependente de inequívoca
manifestação ou declaração da vontade para a celebração, embora tenham,
ambos, o fim de formação de família. O STF tratou apenas de uma das
controvérsias que o tema encerra, de modo que o ato do CNJ está, em
verdade, criando norma de efeito abstrato e geral, o que não se inclui
entre as suas funções, segundo se lê do artigo 103-B da Constituição
Federal.
Não se discute aqui o mérito do ato, até porque, posso
adiantar, sou inteiramente favorável ao conteúdo material do que ali se
defende. A questão está na inobservância de princípios tão caros à
República, como o da separação dos poderes, protegido pelo artigo 60 da
Carta Política, que lhe dá status de cláusula pétrea. Não se discute,
também, a importância do papel desempenhado pelo CNJ.
Todavia, a
sua natureza de órgão administrativo é inegável e já foi reconhecida
pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 3.367/DF. Assim, a competência
advinda de sua natureza precípua não o legitima a assumir o papel de
legislador, regulamentando a orientação de cartórios em matéria que, por
lei, se sujeita a processo de dúvida a ser solucionado pelos
magistrados, nem pode dar interpretação conforme à Constituição, por ser
atribuição do Supremo Tribunal Federal.
O poder regulamentador do
CNJ, por conseguinte, restringe-se a interpretar as leis em sentido
formal com o objetivo de aplicação administrativa, nunca intervindo na
atividade legislativa ou jurisdicional. Sobre o tema principal aqui
tratado andou bem a Corregedoria Geral de Justiça do Rio de Janeiro ao
editar o Provimento CGJ 25/2013, estabelecendo que se trata de matéria
jurisdicional a apreciação de eventual impedimento legal para casamento
homoafetivo, não podendo ato normativo interno do tribunal sobrepor-se
ao entendimento do juízo competente.
Nunca é demais lembrar que o
poder emana do povo, como dispõe o parágrafo único do artigo 1º da
Constituição e o seu exercício se dá através da divisão tripartite acima
mencionada, na qual as atividades legislativas são exercidas
primordialmente pelos parlamentares e as jurisdicionais pelos juízes.
O
tema de fundo está realmente a merecer um tratamento legislativo e o
Congresso já o vem discutindo por um longo tempo. Mas a obediência
republicana recomenda que aguardemos este debate, que está se dando no
foro próprio. Ou, se a espera se alongar por muito tempo, que busquemos
os mecanismos judiciais possíveis, assegurando, assim, a segurança
jurídica, fundamental para a consolidação do Estado Democrático de
Direito.
Cezar Augusto Rodrigues da Costa é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Revista Consultor Jurídico, 30 de maio de 2013
http://www.conjur.com.br/2013-mai-30/cezar-augusto-resolucao-cnj-casamento-gay-tentativa-legislar
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