O Supremo Tribunal Federal decidiu, em 5 de maio de 2011, que a união
entre dois homens ou duas mulheres de natureza afetiva gozará do mesmo
status da união estável entre um homem e uma mulher, a qual, pela
Constituição, artigo 256, parágrafo 3º, é considerada entidade familiar.
Nada
obstante os constituintes não terem elevado a união homossexual a tal
nível, nada obstante o direito privado dar-lhes garantias próprias de
uma união de fato, a Suprema Corte outorgou-se o direito de substituir o
Congresso Nacional e a Constituinte, legislando sobre a matéria e
acrescentando ao texto da Lei Maior que também a união "estável" entre
um homem e um homem ou uma mulher e uma mulher conformam entidade
familiar.
Apesar de ser esta a posição atual do Pretório Excelso,
inúmeros juristas têm tecido considerações de natureza
jurídico-constitucional discordando de tal interpretação, entre elas
destacando-se a do eminente professor de Direito Constitucional, Lenio
Streck que, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo publicada em 6
de maio de 2011, declarou: "isso é espaço para discussão do legislador,
como se fez na Espanha e em Portugal. Lá, esse assunto foi discutido
pelo Parlamento. O Judiciário, nesse ponto, não pode substituir o
legislador".
Neste artigo pretendo exclusivamente ofertar a minha
interpretação da Constituição Federal, para que o leitor possa conhecer
os argumentos daqueles que entendem que a união homossexual não
constitui uma família, por ter sido esta a vontade do constituinte, ao
promulgar a Constituição em 5 de outubro de 1988.
Entendo que a
corrente dos constitucionalistas, que se opõe ao ativismo judicial (o
Judiciário substituindo por auto-outorga de poderes o Legislativo), à
qual me filio, está com a razão, pois apenas o Congresso Nacional, com
poderes constituintes derivados (duas votações com 3/5 de senadores e
deputados decidindo a favor) pode introduzir qualquer modificação na lei
suprema.
Alegou-se, em tese hospedada por alguns ministros dessa
Corte, que a não concessão dos mesmos direitos às uniões de pessoas do
mesmo sexo em relação àqueles que têm os de sexo oposto feriria a
dignidade humana (artigo 1º, inciso III, da CF), a igualdade de
cidadania (artigo 5º, caput), a segurança jurídica (artigo 5º, caput) e a
liberdade (artigo 5º, caput) [1].
Vejamos se tais princípios foram feridos à luz da Constituição Federal.
Claramente,
o princípio da dignidade humana não se encontra ferido pelo tratamento
que até o presente vem sendo dado à união entre dois homens e duas
mulheres, que, por opção sexual, podem se unir, celebrar um contrato à
luz do Direito Civil com previsão de obrigações e direitos mútuos,
inclusive de natureza patrimonial, o que a Constituição não proíbe. Não
há mácula, pois, à dignidade humana neste caso, por todos reconhecida,
como própria do ser humano e que independe de sua opção sexual.
Nem
se tisna, por outro lado, o princípio da liberdade, já que o próprio
reconhecimento de que poderão contrair obrigações e deveres, viver
juntos, participar socialmente de qualquer reunião, cursar qualquer
universidade ou ter qualquer emprego, mostra que sua liberdade de
escolha homossexual em nada é manchada pela lei civil, genericamente
considerada, nem pela lei suprema.
E, em relação à segurança
jurídica, têm os pares de homens com homens e mulheres com mulheres a
mesma segurança de qualquer cidadão e de qualquer casal.
O outro argumento mencionado é que merecerá maiores considerações, pois é aquele que merece reflexão mais aprofundada.
O
respeito à dignidade humana e a liberdade de união dos pares de homens e
homens ou mulheres e mulheres é que não justifica que se considere que
tais uniões sejam iguais àquelas constituídas por um homem e uma mulher.
São
diferentes, jurídica e faticamente, sem que esta diferença represente
qualquer "capitis diminutio" na dignidade dos seres humanos, que optaram
por uma união entre iguais.
A diferença reside em que são pares
que, biologicamente, não podem gerar filhos, o que não ocorre com os
casais constituídos por um homem e uma mulher. A união sexual de dois
homens é impossível de gerar prole, como também a união sexual de duas
mulheres. Podem externar nesta união afeto, mas a grande diferença é que
não podem gerar filhos de sua relação sexual.
Ora, dizer que,
perante a Constituição, são iguais uniões que são biologicamente
diferentes, tendo em vista que somente a que ocorre entre um homem e uma
mulher é capaz de garantir a perpetuação da espécie, constitui, de
rigor, uma falácia. Se todos os homens se unissem com outros homens e
todas as mulheres se unissem com outras mulheres, sem utilização de
qualquer artifício (inseminação artificial), a humanidade se
extinguiria!
Há, pois, nítida diferença biológica e jurídica
entre os casais de homens e mulheres e aquelas uniões entre homens e
homens e mulheres e mulheres. E a diferença capacidade de gerar prole
pelos meios naturais é tão essencial e de tal magnitude que impede a
equiparação.
E, neste aspecto, é que reside, a meu ver, a razão
de ser do capítulo da família na Constituição, já agora passando a
desvendar a questão referente ao artigo 1.723 do Código Civil, assim
redigido:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a
união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência
pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de
constituição de família.
Tenho entendido, em vários escritos, que
o mais relevante princípio da Constituição, depois do direito à vida, é
a proteção à família.
Assim não fosse, não teria o constituinte
com particular ênfase, declarado, no "caput" do artigo 226, que a
família é a base da sociedade:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado (grifos meus).
Do dispositivo, duas considerações essenciais podem ser tiradas, ou seja, que:
a) sem família, não há Estado e, por esta razão, o Estado deve dar
b) especial proteção à família.
A
proteção é de tal ordem, que o casamento passa a ser o ideal maior do
Estado, não só ao permitir sua celebração gratuita "§ 1º - O casamento
é civil e gratuita a celebração" - como também ao dar ao casamento
religioso efeito civil - "§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil,
nos termos da lei".
Como se vê, os dois parágrafos acima deixam
nítido que, para dar maior estabilidade à "base da sociedade", o
casamento é o desiderato maior do Estado. Pretendeu o constituinte - e a
maioria esmagadora entende que constituinte originário - dar o máximo
de estabilidade possível à constituição da família e à prole nela gerada
pela segurança do casamento, nivelando o casamento religioso ao civil,
nos termos da lei.
Compreende-se tal escopo. É de se lembrar que,
hoje, na maioria dos países europeus, todos os governos estão a
incentivar o aumento das proles familiares, com benefícios de toda a
natureza. Ora, tal não é possível, sem métodos artificiais, pela união
de um homem com um homem ou de uma mulher com uma mulher.
Simone
Veil, quando presidiu o Parlamento Europeu, em célebre frase, afirmou
que "os europeus tinham aprendido a fabricar tudo, mas esqueceram de
'fabricar' europeus".
Esta é a razão pela qual o casamento
religioso tem o mesmo "status" do casamento civil e, nas grandes
religiões, aquelas que mudaram a história do mundo, segundo Toynbee, no
livro Um estudo da História, o casamento religioso só pode ocorrer entre
um homem e uma mulher.
A família, pois, decorrente da união de
um homem com uma mulher, que biologicamente pode gerar proles que dão
continuidade à sociedade, no tempo, é que o constituinte pretendeu
proteger, a meu ver, sendo todos os dispositivos referentes à entidade
familiar, cláusulas pétreas, pois dizem respeito aos direitos
individuais mais relevantes, ou seja, de perpetuação da espécie e de
preservação do Estado.
Sensível, todavia, à realidade moderna de
que muitas uniões entre casais (homens e mulheres) não ganham o patamar
de casamento, houve por bem, o constituinte, reconhecer tal união
sempre entre homem e mulher como "entidade familiar", mas,
demonstrando, mais uma vez a relevância do matrimônio, declarou que o
Estado tudo faria para transformar aquela união estável" em
casamento", como se lê no artigo 226, parágrafo 3º:
"§ 3º - Para
efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento" (grifos meus).
Ainda aqui se percebe
nitidamente os dois objetivos primordiais de preservar a família como
base do Estado, capaz de dar perpetuidade ao Estado e à sociedade,
garantindo a união estável entre um homem e uma mulher, como entidade
familiar.
E a prova mais inequívoca de que foi esta a intenção do
constituinte e este o princípio constitucional está em que, na
sequência, o parágrafo 4º declara:
"§ 4º - Entende-se, também,
como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes." (grifos meus).
Ora, qual é o descendente
naturalmente gerado pela união entre um homem e um homem e uma mulher e
uma mulher? Sem artificialismos genéticos ou técnicas médicas utilizando
espermatozóides ou óvulos de terceiros, são incapazes de gerar
descendentes.
Compreende-se, também, o intuito do parágrafo 4º do
artigo 226, ou seja, reconhecer outra realidade: pela morte ou
separação conjugal, pode um dos cônjuges ter que sustentar sozinho seus
descendentes, não deixando de ser, portanto, uma entidade familiar, o
cônjuge remanescente e seus filhos.
Parece-me que o parágrafo 4º
unido ao parágrafo 3º do artigo 226 demonstra, claramente, a
impossibilidade de se considerar unidade familiar a união entre homens e
homens e mulheres e mulheres, que não podem Motu Proprio gerar
descendentes e que mantêm, biologicamente, um relacionamento sexual
diferente daquele que caracteriza a união entre um homem e uma mulher.
O próprio parágrafo 5º, assim redigido:
§
5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são
exercidos igualmente pelo homem e pela mulher reforça a inteligência que
tenho do dispositivo.
Ainda aqui só se fala em homem e mulher,
em meridiana demonstração de que homens e mulheres são iguais na
condução da própria família.
Da união de pessoas de sexo
diferente e exclusivamente dela cuidou o constituinte, deixando às
uniões homossexuais é diferente a união, por opção sexual, não
geradora de prole o direito a outras alternativas para alcançar a
segurança jurídica, mas não a de ter "status" de unidade familiar.
Tanto
é diferente que o governo, por sua Secretaria dedicada aos Direitos da
Mulher, entende não ser aplicável a lei "Maria da Penha" à agressão de
um homem a um outro homem, numa união homossexual.
E, à união
surgida desta forma de opção sexual que não é a opção natural da
maioria esmagadora das pessoas, em que a atração física é capaz de gerar
prole , o Estado pode garantir direitos e obrigações. Pode dar-lhe
status de uma união civil, de obrigações mútuas, mas não de família,
aquela que constitui a base da sociedade capaz de gerar sua perpetuação.
Ora,
o artigo 1.723 do Código Civil, reproduz, claramente, o que está na lei
suprema e sua dicção, em nada difere daquela exposta na lei suprema.
Nem
há que se falar de interpretação conforme, visto que o que decidiu o
STF foi um acréscimo ao texto para nele abrigar situação nele não
prevista, o que difere, a meu ver, do que se entende por interpretação
conforme. Essa modalidade de controle concentrado implica retirar de um
texto abrangente situação que, se por ele fosse abrigada, representaria
uma inconstitucionalidade. É que, levando em conta a pretendida
distinção entre inconstitucionalidade sem redução de texto e a
interpretação conforme, se se admitisse nesta, o acréscimo de hipóteses
ao texto legal não produzidas pela lei, estar-se-ia, de rigor,
transformando o Poder Judiciário em Poder Legislativo.
Mesmo para
os constitucionalistas que consideram a interpretação conforme como
desventradora de situação implícita, contida na norma por isso
distinguem-na daquela sem redução do texto , não se pode admitir que
esta revelação do não expresso represente alargamento da hipótese
legal sem autorização legislativa.
Para mim, na interpretação
conforme, o texto contém mais do que deveria conter. Por esta razão o
que está a mais é retirado sem alteração do texto, a fim de que o
Judiciário não se transforme em legislador positivo.
Em
conclusão, o texto constitucional contém rigorosamente o que deveria
conter, e o que o Supremo Tribunal Federal fez foi acrescentar ao texto
situação não prevista nem pelo constituinte, nem pelo legislador,
transformando o Pretório Excelso em autêntico constituinte derivado, ou
seja, acrescentando disposição constitucional que o constituinte
originário não produziu. Em outras palavras, sem o processo das duas
votações nas duas Casas, com 3/5 de todos os segmentos do povo, a
Suprema Corte, criou norma constitucional inexistente, acrescentando
situações e palavras ao texto supremo, que, como acabo de mostrar,
jamais foi intenção do constituinte acrescentar.
Ainda em outros
termos, o Congresso Nacional eleito por 130 milhões de brasileiros e com
poder de alterar a Constituição pelo voto de 3/5 de sua composição, em
dois escrutínios, foi substituído por um colegiado de 11 pessoas eleitas
por um homem só!
Nada obstante, a decisão do Supremo Tribunal
Federal, que impõe a todo o Judiciário que seja seguida, considero que a
correta interpretação é aquela aqui exposta e que representa também a
inteligência de inúmeros juristas. Dizia, com o respeito devido, Santa
Catarina de Sena aos Cardeais de sua época, quando erravam Vossas
Eminências cometem eminentíssimos erros. Infelizmente, sou obrigado a
dizer dos ministros da Suprema Corte: Vossas Excelências cometem
excelentíssimos erros.
Concluo, finalmente, transcrevendo parte
de recentíssima decisão do Conselho Cosntitucional da França de 27 de
janeiro de 2011, em linha, a meu ver corretíssima e em franca oposição à
do órgão máximo da Justiça Brasileira:
9. Considerando de outra
parte que o artigo 6 da Declaração de 1789 dispõe que a lei deve ser a
mesma para todos, seja quando ela protege, seja quando ela pune: que o
princípio da igualdade não se opõe a que o legislador que regule de
maneira diferentes situações diferentes, nem a que se derrogue a
legalidade por razões de interesse geral, visto que, em um ou outro
caso, a diferença de tratamento de que daí resulta seja vinculado
diretamente ao objeto da lei que o estabelece; que, no momento, o
princípio segundo o qual o casamento é a união entre um homem e uma
mulher, o legislador tem, no exercício da competência que lhe atribui o
art. 34 da Constituição, considerando que a diferença de situação entre
casais do mesmo sexo e casais compostos de um homem e de uma mulher
podem justificar uma diferença de tratamento quanto às regras do direito
de família; que não cabe ao Conselho Constitucional de substituir sua
apreciação àquela do legislador, sob o prisma, nesta matéria, desta
diferença de situação; que, por consequência, a pretendida maculação do
artigo 6 da Declaração de 1789 deve ser descartada;
10. Assim
sendo, pois, que disto resultou de que no que concerne a limitação que
atenta contra a liberdade de casamento deve ser afastada;
11. Concluindo que as disposições constantes são contrárias a nenhum direito ou liberdade que a Constituição garante;
Decide:
1) A letra última do artigo 75 e o artigo 144 do Código Civil (união entre homem e mulher) estão conformes a Constituição;
2) A decisão será publicada no jornal oficial da República Francesa (grifos meus).
São Paulo, Maio de 2011.
IGSM/mos/a2011-041-1 A CF e o HOMOSSEX ADAP PAR CNBB
________________________________________
[1] Os artigos citados estão assim redigidos:
Art.
1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: ...........
III - a dignidade da pessoa humana;
....
Art.
5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: .....
Autor:
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS é advogado tributarista, professor emérito
das Universidades Mackenzie e UniFMU e da Escola de Comando e Estado
Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da
Federação do Comércio do Estado de São Paulo, do Centro de Extensão
Universitária e da Academia Paulista de Letras.
Fonte: Site da Arpen SP
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