A própria propriedade é transferida ao credor, mesmo que de forma
precária ou resolúvel. A fidúcia, que significa confiança, reside na
natureza do instituto. O credor confia que o devedor honrará a obrigação
assumida, e o devedor confia que o credor não imporá dificuldades à
resolução da propriedade.
Francisco Loureiro expõe de forma incisiva as implicações jurídicas do instituto:
“A propriedade fiduciária constitui patrimônio de afetação, porque despida de dois dos poderes federados do domínio – jus utendi e fruendi -, que se encontram nas mãos do devedor fiduciante. O credor fiduciário tem apenas o jus abutendi e, mesmo assim, sujeito à condição resolutiva, destinado, afetado somente a servir de garantia ao cumprimento de uma obrigação. O direito de dispor, na verdade, está atrelado à cessão do crédito garantido. A propriedade-garantia é acessória à obrigação e segue sua sorte. A peculiaridade é que, ao contrário das demais garantias reais, incide não sobre coisa alheia, mas sobre coisa própria transferida ao credor, embora sob condição resolutiva”. (LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.01.2002: contém o Código Civil de 1916 / coordenador Cezar Peluso. – 5. ed. rev. e atual. – Barueri, SP: Manole, 2011,página 1425).
Importante, neste momento, deixar claro que há distinção entre
propriedade fiduciária e a alienação fiduciária. Esta é o contrato, o
acordo de vontades voltado a constituir uma coisa em garantia.
Propriedade fiduciária é a garantia real do negocio jurídico celebrado.
Novamente, Francisco Loureiro afirma:
“Não se confunde com a alienação fiduciária em garantia, o contrato que serve de título para a constituição da propriedade fiduciária. A alienação fiduciária é o negócio jurídico, enquanto a propriedade fiduciária é direito real com escopo de garantia”. (LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.01.2002: contém o Código Civil de 1916 / coordenador Cezar Peluso. – 5. ed. rev. e atual. – Barueri, SP: Manole, 2011,página 1424).
Interessante discussão insurge na doutrina: se a propriedade fiduciária
é direito real ou não. Tanto o Código Civil de 1916 e quanto o atual
não trataram diretamente sobre isso. A Lei nº 9.514/97, em seu art. 17, §
1º, impõe a natureza jurídica de direito real à propriedade fiduciária
sobre bem imóvel (a Lei menciona, inapropriadamente, que a alienação
fiduciária, e não a propriedade fiduciária, é direito real).
No entanto, o Código Civil, no art .1.225, exclui a propriedade
fiduciária dessa condição de direito real. A exclusão não é explícita.
Deriva da taxatividade do mencionado artigo.
E a questão mais importante é a de definir se a propriedade fiduciária é
capaz de transferir a propriedade de forma plena ao credor. Isso é
crucial para classificá-la como direito real, justamente porque não é
possível a constituição de direito real sobre coisa própria.
Vejamos a opinião de NamemChalub:
“Ao ser contratada a alienação fiduciária, o devedor-fiduciante transmite a propriedade ao credor-fiduciário e, por esse meio, demite-se do seu direito de propriedade; em decorrência dessa contratação, constitui-se em favor do credor-fiduciário uma propriedade resolúvel; por força dessa estruturação, o devedor-fiduciante é investido na qualidade de proprietário sob condição suspensiva, e pode tornar-se novamente titular da propriedade plena ao implementar a condição de pagamento da dívida que constitui objeto do contrato principal. (CHALHUB, MelhimNamem. Negócio Fiduciário. Rio de Janeiro - São Paulo: Renovar, 2000, 2ª ed, página 222)”.
Namem defende a idéia de que não é possível considerar a propriedade
fiduciária como direito real. Entende que neste instituto o devedor
transfere a propriedade ao credor, fugindo do feixe de incidência dos
poderes inerentes ao proprietário, com exceção do uso e o gozo.
Já Ubirayr Vaz diverge:
Ressalta do contexto da Lei 9.514 que a transmissão da propriedade resolúvel, como parte integrante do contrato de alienação fiduciária, não significa a perda da propriedade pelo fiduciante, nem seu ingresso no patrimônio do fiduciário. A perda da propriedade, com o caráter que lhe empresta o Código Civil, somente ocorrerá quando, não pagas as prestações e seus encargos, consolidar-se a propriedade fiduciária, e, ainda, se for ela alienada no primeiro leilão, pelo valor estipulado no contrato; se for ela alienada no segundo leilão, pelo valor igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais; com a extinção da dívida e respectiva quitação, caso no primeiro e no segundo leilões os maiores lances não alcancem os valores mínimos supra mencionados. Trata-se, pois, de transmissão e aquisição, a que não se podem aplicar, de forma intransigente e dogmática, os conceitos tradicionais da propriedade e da própria alienação." (VAZ, Ubirayr Ferreira. Alienação Fiduciária de coisa imóvel – Reflexos da lei nº 9.514/97 no Registro de Imóveis. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, página 55)”.
Filio-me a esta segunda corrente. Em verdade, a constituição da
propriedade fiduciária ocorre como garantia da exequibilidade de certa
obrigação. O direito real que existe é sobre os direitos que ainda
persistem sobre o devedor. Adimplida a obrigação, o direito real se
desfaz, e o devedor receberá o que havia transferido de forma resolúvel
ao credor. O desdobro da propriedade ocorre com o único fito de
garantia.
Clóvis Bevilaqua leciona didaticamente a natureza da propriedade
resolúvel, afirmando que “propriedade resolúvel, ou revogável, é a que,
no próprio título de sua constituição encerra o princípio, que a tem de
extinguir, realizada a condição resolutória, ou advindo o termo, seja
por força de declaração, seja por determinação da lei” (BEVILAQUA,
Clóvis. Direito das coisas. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1951, p.
243).
A classificação como sendo propriedade revogável indica a natureza do instituto e a sua condição temporária.
Em verdade, não há transferência total da propriedade. Os poderes
inerentes ao direito de propriedade são transferidos em parte. O uso e o
gozo remanescem com o devedor. Ao credor, nem mesmo o direito de
disposição lhe cabe. Pode, no entanto, reivindicar a coisa contra quem a
injustamente possua. A alienação do direito real da propriedade depende
da concordância expressa do credor e do devedor. Tanto que a
transferência da posição de credor fiduciário se faz por cessão e não
por outro título causal translativo (v.g. compra e venda, doação,
permuta, etc).
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