Inaugurando a
Doutrina de Proteção Integral da criança, o referido artigo definiu com
clareza que todos os direitos da criança não deveriam ser apenas
assegurados, como acontece com qualquer outro direito constitucional.
Algo de novo e transformador consolidou-se nas linhas do texto
constitucional, determinando às crianças brasileiras um novo status
e, portanto, um novo direito. Em uma junção única de palavras,
inexistente em qualquer outro lugar na Constituição, consolidava-se, há
25 anos atrás, o direito da criança à Prioridade Absoluta.
Dentro do sistema
de normas da Constituição Federal, não há nenhuma outra determinação tão
forte e expressa no sentido da proteção de direitos. O art. 227 coloca a
criança como foco central de todas as preocupações constitucionais,
determinando, ao menos no plano deontológico, que seus direitos e
interesses devem ser observados em 1o lugar, antes de qualquer outro interesse ou preocupação. Detalhando a norma, o ECA em seu art. 4o
define que tal absoluta prioridade compreende, dentre outros, a
destinação de recursos públicos, a formulação e execução das políticas
sociais públicas, o atendimento nos serviços públicos ou de relevância
pública e o recebimento de proteção e socorro em quaisquer
circunstâncias.
No entanto, esse
dever de garantir à criança Prioridade Absoluta não se restringe apenas à
esfera de atuação e dos processos decisórios do Estado e de seus
governantes. Segundo o mesmo artigo, todos nós – famílias e indivíduos
na sociedade –, temos o dever de participarmos na realização desse
objetivo, fazendo cada um a sua parte. Mais uma vez, o art. 227 inovou
ao dirigir-se não apenas ao próprio Estado, no sentido de norteá-lo na
execução de suas tarefas para promoção e defesa dos direitos dos
indivíduos e coletividades. Ao determinar com exatidão o dever “da
família, da sociedade e do Estado”, realiza com veemência um chamamento
normativo a todos os atores sociais para uma ação constante na defesa e
promoção dos direitos das crianças; e não somente da criança diretamente
ligada às nossas vidas, da criança filha, da criança sobrinha, da
criança neta ou da criança conhecida.
O art. 227 nos
conclama a agirmos na defesa e promoção dos direitos de todas as
crianças: da criança desconhecida, mas que sofre os abusos da violência
diária em suas casas; da criança desconhecida, mas carente da falta de
espaços seguros para o lazer e exercício do seu direito de brincar; da
criança desconhecida, mas que passa seus dias e horas no labor constante
entre os carros na cidade; da criança desconhecida, mas que recebe
todos os dias o bombardeio das abusivas publicidades infantis; da
criança desconhecida e invisível aos nossos olhos, mas sobrevivente em
um cenário concreto e visível de violações de seus direitos e
desrespeito a sua condição de vulnerabilidade e de indivíduo em
desenvolvimento.
E se o art. 227 foi
tão revolucionário, qual o motivo de todos nós ainda não o termos
efetivado? Poderíamos elencar uma série de fatores históricos, culturais
e sócio-comportamentais, como, por exemplo, o entendimento aferido pela
Fundação Getúlio Vargas no índice de percepção do cumprimento da lei no
Brasil, de que para 82% dos brasileiros é fácil desobedecer às leis. Ou
ainda, da compreensão de que as crianças brasileiras somente há pouco
foram consideradas sujeitos de direitos e não mais mini-adultos
No entanto, um dado
alarmante nos chama mais fortemente os olhos. Fugindo do mito jurídico
do conhecimento presumido da lei, constatamos, por meio de uma pesquisa
realizada pelo Instituto Datafolha em junho de 2013, que mais de 80% da
população brasileira não se considera informada sobre os direitos da
criança, previstos na Constituição e no ECA. E, quando apresentados ao
conceito de prioridade absoluta do art. 227, apenas 24% dos
entrevistados se declararam informados sobre o conteúdo e o significado
da norma.
Sabemos que o
conhecimento de um direito é o primeiro passo para torná-lo realidade.
Eis, então, um imediato obstáculo que temos que superar para tornar o
novo direito do art. 227 realidade no plano fático da ação no mundo da
vida. Aproximar o Direito daquele que não possui conhecimento de seus
direitos e instruí-lo para exigi-los, talvez seja a mais nobre e
emancipatória função de um Estado e de uma Sociedade Democráticos de
Direito.
O novo direito
preconizado pelo art. 227 nos convida como operadores a realizarmos,
igualmente, um Direito novo. Um Direito no qual o superior interesse das
crianças de nossas comunidades seja colocado em primeiro lugar. Um
Direito balizado pela defesa dos interesses coletivos e difusos de
nossas crianças certamente resultaria em mundo diferente e melhor para
todos nós; um Mundo novo, no qual a novidade da Prioridade Absoluta do
art. 227 tenha sido superada pela própria realidade.
Autores : Isabella Henriques, advogada e diretora do Instituto Alana, e Pedro Hartung, advogado do Instituto Alana e conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.
http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI191102,91041-O+Direito+novo+do+art+227
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